O Estado de S. Paulo
Déficit primário em 2023 foi de R$ 230,5 bilhões, ou 2,1% do PIB. Em 2022, as contas registraram superávit. Justificativa foi a antecipação do pagamento de precatórios, de R$ 92,3 bilhões, e a compensação a Estados e municípios em razão de perdas com ICMS. O maior déficit ocorreu em 2020, início da pandemia.
O governo fechou 2023, primeiro ano da nova gestão Lula, com o segundo maior rombo nas contas públicas da série histórica, iniciada em 1997. Segundo dados divulgados ontem pelo Tesouro Nacional, o déficit primário (resultado das receitas menos as despesas, sem levar em conta o pagamento dos juros da dívida pública) ficou em R$ 230,5 bilhões, o equivalente a 2,1% do PIB.
No ano anterior, essa conta havia ficado positiva – um superávit de R$ 54,1 bilhões, um número considerado “fora da curva”. O pior resultado da série histórica foi registrado em 2020, primeiro ano da pandemia da covid-19, quando o déficit primário chegou a R$ 939,5 bilhões (em números corrigidos pela inflação).
A meta traçada para este ano pela equipe econômica é de déficit zero, mas o resultado registrado em 2023 fortaleceu no mercado as projeções de novo rombo. Já o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, fala em “reversão da tendência” no médio prazo (mais informações na pág. B2).
A explicação para o déficit ano passado foi a antecipação do pagamento de precatórios (dívidas judiciais do governo nas quais não cabe mais recurso) de R$ 92,3 bilhões, além da compensação a Estados e municípios em razão de perdas na arrecadação com ICMS. Mesmo sem o pagamento dos precatórios, o déficit teria sido de R$ 138,1 bilhões – o equivalente a 1,27% do PIB, ainda acima da promessa que havia sido feita pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de fechar o ano com déficit de 1%.
A meta fiscal ajustada para 2023 admitia um rombo de até R$ 213,6 bilhões nas contas do governo central (conceito que engloba Tesouro, Previdência Social e Banco Central). Para a aferição formal, porém, o governo poderá descontar desse cálculo da meta os gastos com a regularização dos precatórios, em decisão autorizada pelo Supremo Tribunal Federal.
O pagamento dos precatórios estava represado em razão da chamada “PEC do Calote”, que “pedalou” o pagamento desses débitos da União, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, até 2026. A PEC foi proposta em 2021 para enfrentar o que o então ministro da Economia, Paulo Guedes, chamou de “meteoro”: uma fatura de R$ 89 bilhões que teria de ser honrada ainda em 2022, durante o período eleitoral, com Bolsonaro buscando a reeleição.
Em dezembro do ano passado, porém, o governo Lula editou uma medida provisória que abriu um crédito extraordinário – fora do limite de despesas – de R$ 93,1 bilhões para quitar esse estoque de precatórios represados, e conseguiu autorização do STF para desconsiderar essas despesas da aferição da meta fiscal.
Podendo ou não descontar os gastos com precatórios da meta fiscal, os números mostram o tamanho do desafio do governo para este ano, quando a meta a ser perseguida é de zerar o déficit, de acordo com as regras previstas no novo arcabouço fiscal. No mercado financeiro, é praticamente unânime a avaliação de que a meta terá de ser reformulada em algum momento para acomodar um rombo que, para muitos, seria inevitável.
O equilíbrio orçamentário é importante para a redução da dívida pública, o que acaba tendo impacto na inflação, nos juros e na atração de novos investimentos. Mas, tirando o superávit extraordinário registrado em 2022, o País convive com déficits nas contas desde 2013.
A XP Investimentos, por exemplo, projeta novo déficit primário para o governo central (conceito que engloba Tesouro, Previdência Social e Banco Central) de 0,6% do PIB em 2024. Para o economista da corretora Tiago Sbardelotto, as medidas recém-aprovadas pelo governo para tentar aumentar a arrecadação deverão ter efeitos positivos, mas não o suficiente para alcançar a meta de déficit zero neste ano.
“Algumas receitas incluídas no Orçamento permanecem altamente incertas, como os R$ 34,5 bilhões das concessões ferroviárias e os R$ 35 bilhões da mudança nos subsídios do ICMS”, disse Sbardelotto, em nota. Ele acrescenta que a eventual extensão do programa de desoneração da folha de pagamento (tema que está em discussão no Congresso) pode impor um viés de baixa nas receitas previdenciárias esperadas pelo governo. “Além disso, ainda vemos pressão proveniente de gastos relacionados à previdência e assistência social, o que poderia exigir algum bloqueio nas despesas discricionárias (mas não deve aumentar o gasto total).”
Já o economista-chefe do Banco BMG, Flavio Serrano, projeta um déficit primário de pouco menos de 1% do PIB. Segundo ele, em um cenário otimista, com o efeito da elevação de receitas pretendido pelo governo, o saldo negativo diminuiria para cerca de 0,6% do PIB. Mesmo assim, ainda ficaria acima da margem de tolerância admitida no arcabouço fiscal, que é de um déficit de 0,25% para uma meta zero.
Em entrevista na semana passada ao Estadão, o economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, disse que, em março, o governo “vai ter de escolher entre alterar a meta (de resultado primário), fazer contingenciamento (do Orçamento), ou uma combinação dos dois”. Para ele, seria aceitável um rombo nas contas de até 1% neste ano, porque isso significaria uma queda acentuada em relação ao visto no ano passado, indicando um esforço na questão fiscal. “Se passar de 1%, vai gerar preocupação; de 1,5%, mais ainda; 2%, então, nem se fala, dado que no ano passado já foi acima disso”, disse. O governo precisa divulgar em março o primeiro relatório de receitas e despesas do ano.
‘Bons sinais’
Na avaliação do secretário do Tesouro, Rogério Ceron, embora o resultado de 2023 tenha sido o segundo pior da série histórica, o número já indicaria o início de um processo de recuperação fiscal. “Nossa sinalização para o horizonte de médio prazo é de reversão dessa tendência que vem acontecendo em mais de uma década, de piora a cada um desses ciclos”, disse o secretário, reforçando que o governo trabalha para se aproximar de resultados mais próximos do equilíbrio orçamentário. “Esperamos que, a partir de 2024, o movimento de recuperação fiscal fique mais nítido.”
Ele citou que, de janeiro de 2019 a dezembro de 2022 (mandato de Jair Bolsonaro), o resultado primário anualizado registrou uma média de déficit de R$ 263,2 bilhões. “Fechamos com um resultado que já é melhor que a média dos últimos anos.”
Apesar da descrença do mercado, Ceron afirmou que o governo vê “bons sinais” para o cumprimento da meta fiscal em 2024, em linha com o planejado pela Fazenda. Na avaliação do secretário, a regra do arcabouço que limita o crescimento das despesas é a essência do novo marco fiscal e irá garantir que, “ano a ano”, o Executivo melhore seu resultado. “Tem meta mais arrojada justamente para acelerar a recuperação”, afirmou.
Questionado sobre o risco de o governo ter superestimado as receitas – advertência feita tanto por economistas quanto pelo Tribunal de Contas da União –, Ceron respondeu que a partir de fevereiro o governo terá dados mais atualizados para avaliar a performance estimada para o ano. “Mas os dados parciais de janeiro mostram uma performance até maior do que o esperado”. (O Estado de S. Paulo/Fernanda Trisotto e Amanda Pupo)