‘No Brasil, usuário ainda é escravo de veículo elétrico’

O Estado de S. Paulo/Mobilidade

 

José Luiz Gandini, presidente da Kia do Brasil, não encontra sossego no mercado brasileiro desde 2013. No início daquele ano, entrou em vigor o Inova-Auto, política automotiva que, entre outras medidas, criou a sobretaxa de 30 pontos percentuais no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de carros importados, atitude considerada protecionista para as fabricantes locais e que sufocou as marcas que não produziam no País. Em 2020, a pandemia provocada pela covid-19 também atingiu em cheio as atividades da empresa. “A operação de importar automóveis ficou extremamente prejudicada, porque não havia navios para o transporte”, lembra Gandini. O desassossego continuou neste ano, quando uma decisão do governo federal levou ao aumento gradativo do imposto de importação dos veículos elétricos, a partir de janeiro de 2024, começando com 10% e chegando a 35% em julho de 2026. “Ainda não sei o que vai acontecer, mas seguramente precisaremos buscar novas alternativas”, afirma. Se não bastasse, Gandini relata que 2023 é um ano para ser esquecido pela Kia. “Vendemos apenas 5 mil carros”, justifica. Em tempos de expansão da eletromobilidade, ele faz questão de ressaltar que não é contra os automóveis movidos a bateria, mas defende maior investimento na tecnologia híbrida, conforme destacou nesta entrevista ao Mobilidade.

 

Como a Kia está se preparando para a eletrificação no Brasil?

A eletrificação está apenas no começo e atravessa um momento complicado, depois que o governo federal decidiu aumentar os impostos de importação do veículo eletrificado de forma escalonada. O cenário parece nebuloso, e teremos de buscar novas alternativas, ainda mais em 2026, quando a tributação alcançar 35%.

 

Dá para dizer que as marcas foram surpreendidas com essa medida?

A decisão foi tomada para forçar as marcas que estão trazendo carros elétricos a produzir no País. Não é tão simples assim. Meu feeling diz que tudo isso aconteceu também para acomodar a situação da antiga fábrica da Ford, em Camaçari (BA). Até hoje, não está claro se as instalações pertencem ao governo da Bahia ou à BYD. Para mim, esse negócio entre BYD e governo federal não está muito claro.

 

A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) não se posicionou sobre isso?

Sinto que a própria Anfavea está dividida. Porque ninguém sabe como o mercado vai reagir. Ainda mais com a dolarização volátil, tão comum no Brasil. Como podemos nos planejar?

 

Mas haverá um sistema de cotas de veículos elétricos com os impostos antigos para minimizar essa dificuldade?

É o que dizem. Uma certa quantidade de veículos estará livre dos novos impostos. No entanto, é uma situação indefinida, ninguém nos disse nada sobre esse assunto.

 

O anúncio da nova tributação alterou os planos da Kia do Brasil?

Precisamos sentir confiança na nossa operação de embarcar veículos eletrificados para o Brasil. Sou a favor da eletrificação, mas, para ser sincero, neste momento, acredito mais no sucesso do automóvel com motor híbrido. O elétrico ainda enfrenta certas limitações, como infraestrutura de recarga e até de manutenção.

 

Manter o carro elétrico não é mais barato por ter uma quantidade menor de peças?

Sim; porém, existem situações peculiares. Dou um exemplo: tenho um amigo dono de modelo elétrico esportivo cuja bateria – instalada embaixo do assoalho – foi seriamente avariada depois de passar em um buraco. O orçamento da concessionária para o conserto: R$ 600 mil. Também houve um caso de roubo de carro estacionado em um eletroposto durante a recarga. Ou seja, ainda há muito problema para resolver.

 

Diante desse cenário, como está a matriz da Kia Motors, na Coreia do Sul, com relação ao mercado brasileiro?

A Kia está empolgada com a eletrificação automotiva, e vem investindo pesado em novos projetos. Para ter ideia, em novembro, a empresa praticamente montou uma cidade no Deserto do Atacama (Chile) para o lançamento do elétrico EV9. Para a Kia, o mercado da América do Sul tem grande potencial de crescimento.

 

O senhor não está na contramão desse otimismo da Kia?

Quero deixar bem claro que não sou contra carro elétrico. Só não estou seguro de que ele é tão importante agora no Brasil. Ainda assim, não deixaremos de vendê-lo, evidentemente em pequenos volumes. Repito: a meu ver, o momento é de apostar no veículo com tecnologia híbrida.

 

O carro híbrido é um degrau antes da aquisição de um totalmente elétrico?

Podemos encarar assim. O híbrido é uma ponte interessante, e sua tecnologia já se provou eficiente e econômica. Veja o caso do Niro, com propulsão híbrida de 141 cv de potência. Na cidade, ele faz quase 20 km/h e, na estrada, 17,7 km/l. Quando o Brasil estiver pronto, aí sim a indústria poderá investir mais no sistema elétrico. Hoje, o usuário ainda é escravo do carro elétrico, e não o contrário.

 

Então, quais serão os próximos lançamentos reservados para o Brasil?

Já oferecemos, por aqui, os híbridos Sportage, Stonic e Niro. O Niro EV, 100% elétrico, está em fase de homologação para o mercado nacional. Há outras ótimas novidades a caminho. Não vou deixar de trazer elétricos, apesar da minha opinião. Em 2024, queremos importar EV9, EV6 e K3, modelo híbrido com motor turbo 1.0 flex. Também teremos a volta do Carnival com motor quatro cilindros e do Sorento 4×4 diesel. (O Estado de S. Paulo/Mobilidade/Mário Sérgio Venditti)