O Estado de S. Paulo Online
No momento em que se discute a volta dos chamados “carros populares” na tentativa de aumentar o acesso de parte da população ao automóvel novo e ajudar a indústria automobilística a recuperar o mercado que tinha antes da pandemia, o País tem como campeões de venda os utilitários-esportivos. A categoria de SUVs, como são conhecidos, caiu no gosto dos brasileiros com maior poder de compra e hoje representa quase metade dos negócios de veículos novos. Todos os modelos à venda custam mais de R$ 100 mil.
Por longos anos, os líderes de mercado eram os “populares”, depois rebatizados de “carros de entrada” por serem os mais baratos de cada marca. O segmento detinha 31,3% das vendas em 2012, ano em que as vendas de automóveis somaram 3,1 milhões de unidades. Neste ano, a fatia é de 9,3% até abril.
Por outro lado, a participação dos SUVs saltaram de 8,8% para 46,4% de 2012 para cá. Atualmente há mais de 100 modelos desse tipo de veículo disponíveis no País entre nacionais e importados, conforme dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave).
A produção local de SUVs também vem crescendo. Em 2012, havia12 modelos nacionais e hoje há 31, com preços que partem de R$ 101 mil (Fiat Pulse) a R$ 610 mil (BMW X4). Só os 13 utilitários mais vendidos, todos fabricados no País, respondem por quase 80% das vendas do segmento. Já a maior parte dos importados são das categorias premium e luxo, com preços que vão além de R$ 1 milhão.
Paralelamente, só há dois carros “de entrada” em oferta, o Fiat Mobi e o Renault Kwid, ambos por R$ 69 mil. Há dez anos eram oito opções, todas nacionais: Volkswagen Gol, Fiat Uno e Palio, Chevrolet Celta, Ford Ka, Peugeot 207, Renault Clio e Toyota Etios, com preços, na época, entre R$ 21,4 mil e R$ 31,4 mil.
Mudança no perfil de consumo
A mudança do perfil do mercado ocorre por várias razões. Uma delas, usada frequentemente pelas fabricantes, são as novas leis de segurança e emissões, que passaram a exigir itens como airbag, freios ABS em todos os novos carros, além de tecnologias para reduzir o consumo de combustível.
“Com a obrigação de novos equipamentos, o custo de produção e venda dos carros aumentou bastante”, afirma Igor Machado Torres, economista e analista da Tendências Consultoria. Somado aos juros altos, desemprego e queda da renda de muitos brasileiros, uma camada significativa da população está excluída do mercado de carros novos.
A falta de componentes (em especial de chips) acirrada pela pandemia, também ajudou na alta dos custos, assim como problemas de logística (preço de frete, de contêineres etc).
Laís Magnoler, de 32 anos, tem um Sandero 2014, adquirido zero e que já rodou 125 mil km. Ele tem apresentado algumas falhas, embora ela mantenha os serviços de manutenção em dia. “Recentemente tive de trocar as velas e no ano passado teve um problema no ar-condicionado; fiquei sem usá-lo por três meses até levar ao conserto”, diz ela, que trabalha na área de marketing.
O desejo de Laís é trocar o carro por um SUV Creta, da Hyundai. No início de 2022 ela pesquisou os preços do modelo, na época na faixa de R$ 80 mil, mas concluiu que não daria para comprar porque ajuda o companheiro a pagar prestações de um apartamento ainda em construção.
Hoje, a versão mais barata do Creta, de geração anterior a atual, custa R$ 116,6 mil. Como o Sandero vale cerca de R$ 25 mil a R$ 30 mil, Laís teria de parcelar a diferença, mas, com os juros atuais, “o preço ficaria mais que o dobro, então vou esperar mais e tentar cobrar à vista”, afirma.
De acordo com o Banco Central, o juro médio para a compra de veículos está em 28,6% ao ano (dado de março), o maior em mais de dez anos. Com a inadimplência acima de 5%, os bancos também estão restritivos na liberação de crédito. “Essa taxa de juro é incompatível com o crescimento da indústria e com a geração de empregos”, diz o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite.
Demanda reprimida
Segundo Torres, há uma demanda reprimida de consumidores que poderiam comprar um carro popular se o preço for reduzido. O governo promete um pacote de medidas para ajudar na reativação do setor industrial a ser anunciado na próxima quinta-feira, 25. No caso da indústria automobilística são esperadas medidas para baixar o preço dos carros “de entrada” para entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. Também pode ter alguma medida para modelos de até R$ 100 mil, o que atingiria outros segmentos de veículos.
Para chegar a essa faixa no “popular” são necessários incentivos como corte de alíquotas de impostos federais e estaduais, redução de margens de lucro de montadoras e concessionárias e retirada de alguns itens como multimídia, além de uso de materiais menos nobres em estofamentos e forros, por exemplo. Também são esperados juros menores e prazos mais longos para os financiamentos.
Quem tem um carro seminovo para vender tem maior facilidade na troca por um zero, pois a diferença a pagar é menor. Essa é parte da explicação para a mudança no perfil da forma de compra. Há três anos, 51% das vendas eram a prazo e 49% à vista. Hoje, são 33% a prazo e 67% à vista. ‘É uma proporção completamente na contramão da dinâmica do mercado de automóveis, que sempre dependeu muito de crédito”, avalia Torres.
Tendência global
O economista da Tendências acredita que eventuais medidas de incentivo ao mercado serão pontuais. Ainda que se consiga chegar aos preços sugeridos pelo governo, o consumidor seguirá esbarrando na falta de opções de modelos “de entrada”. Na faixa acima, a de hatches, há mais variedade como Chevrolet Onix, Hyundai HB20, Volkswagen Polo e Citroën C3, a maioria com preços acima de R$ 80 mil.
A maioria das montadoras está focando seus lançamentos em SUVs ou modelos mais equipados, justamente porque o lucro na venda é maior. Torres acredita que, dependendo das medidas a serem anunciadas, as fabricantes podem lançar versões mais baratas de SUVs, movimento que, diz ele, já vem ocorrendo nos últimos anos com o aumento da produção local.
Para Torres, “o crescimento do mercado de SUVs é uma tendência mundial, vem ocorrendo também no Brasil há cerca de dez anos e deverá continuar, pois os próprios consumidores estão migrando para esse tipo de veículo, visto como mais espaçoso, mais versátil, com design moderno e percebidos por muitos como mais seguros por serem mais robustos e a posição do motorista ser mais elevada”. (O Estado de S. Paulo Online/Cleide Silva)