O Estado de S. Paulo
O governo planeja reviver a era do carro popular, mas a realidade do mercado é bem diferente da do início dos anos 2000, informa Cleide Silva. Há uma década, o carro “de entrada” representava um terço das vendas de veículos no País. Hoje, essa fatia é de 9,3%. Os atuais campeões de venda, com 46,4% do mercado, são os utilitários-esportivos, conhecidos como SUVs, com preço sempre acima dos R$ 100 mil e destinados a um público de maior poder aquisitivo. No mercado, só há dois carros “de entrada” disponíveis, o Fiat Mobi e o Renault Kwid, ambos por R$ 69 mil. Segundo analistas, há demanda reprimida de interessados num “popular” se o preço for reduzido. O governo pretende anunciar na quinta-feira medidas para reativar a indústria.
No momento em que se discute a volta dos chamados “carros populares” na tentativa de aumentar o acesso de parte da população ao automóvel novo e ajudar a indústria automobilística na busca por recuperar o mercado que tinha antes da pandemia, o País tem como campeões de venda os utilitários-esportivos. A categoria de SUVs, como são conhecidos, caiu no gosto dos brasileiros com maior poder de compra e hoje representa quase metade dos negócios de veículos novos. Todos os modelos à venda custam mais de R$ 100 mil.
Por vários anos, os líderes de mercado eram os “populares”, depois rebatizados de “carros de entrada” por serem os mais baratos de cada marca. O segmento detinha 31,3% das vendas em 2012, ano em que as vendas de automóveis somaram 3,1 milhões de unidades. Neste ano, até abril, a fatia é de 9,3%.
Por outro lado, a participação dos SUVs saltou de 8,8% para 46,4% de 2012 para cá. Atualmente há mais de 100 veículos desse tipo no País entre nacionais e importados, de acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave).
A produção local de SUVs também vem crescendo. Em 2012, havia 12 modelos nacionais e hoje há 31, com preços que partem de R$ 101 mil (Fiat Pulse) e vão a R$ 610 mil (BMW X4). Os importados têm preços que passam de R$ 1 milhão.
Paralelamente, só há dois carros “de entrada” em oferta, o Fiat Mobi e o Renault Kwid, ambos por R$ 69 mil. Há dez anos eram oito opções: Volkswagen Gol, Fiat Uno e Palio, Chevrolet Celta, Ford Ka, Peugeot 207, Renault Clio e Toyota Etios.
Novo perfil
A mudança do perfil do mercado ocorre por várias razões. Entre elas estão as novas leis de segurança e emissões, que passaram a exigir itens como airbags e freios ABS em todos os novos carros, além de tecnologias para redução de consumo.
“Com a obrigação de novos equipamentos, o custo de produção e venda dos carros aumentou bastante”, afirma Igor Machado Torres, economista e analista da Tendências Consultoria. Somado a juros altos, desemprego e queda da renda, uma camada significativa da população ficou excluída do mercado de carros novos.
A falta de componentes (especialmente de chips) acirrada pela pandemia também ajudou na alta dos custos, assim como problemas de logística (preço de frete, falta de contêineres etc).
Sonho adiado
Laís Magnoler, de 32 anos, tem um Renault Sandero 2014, adquirido novo e que já rodou 125 mil km. Ele tem apresentado algumas falhas. “Recentemente tive de trocar as velas, e no ano passado teve um problema no arcondicionado; fiquei sem usálo por três meses até levar ao conserto”, diz ela, que trabalha na área de marketing.
O desejo de Laís é trocar o carro por um SUV Hyundai Creta. No início de 2022 ela pesquisou os preços, na época na faixa de R$ 80 mil, mas concluiu que não daria para comprar porque ajuda o companheiro a pagar prestações de um apartamento em construção.
Hoje, a versão mais barata do Creta, de geração anterior à atual, custa R$ 116,6 mil. Como o Sandero vale de R$ 25 mil a R$ 30 mil, Laís teria de parcelar a diferença, mas, com os juros atuais, “o preço ficaria mais que o dobro, então vou esperar mais e tentar comprar à vista”, afirma.
De acordo com o Banco Central, o juro médio para a compra de veículos está em 28,6% ao ano (dado de março), o mais alto em mais de dez anos. Com a inadimplência acima de 5%, os bancos também estão restritivos na liberação de crédito. “Essa taxa de juro é incompatível com o crescimento da indústria e com a geração de empregos”, diz o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite.
Pacote de medidas
Segundo Torres, há uma demanda reprimida de consumidores que poderiam comprar um carro “popular” se o preço for reduzido. O governo promete anunciar na próxima quinta-feira um pacote de medidas para reativar o setor industrial. No caso da indústria automobilística são esperadas decisões para baixar o preço dos carros “de entrada” para uma faixa de R$ 50 mil a R$ 60 mil. Também pode ter alguma medida para modelos de até R$ 100 mil.
Para chegar a essa faixa no “popular” são necessários incentivos como corte de alíquotas de impostos federais e estaduais, redução de margens de lucro de montadoras e concessionárias e retirada de alguns itens como multimídia e ar-condicionado. Também são esperados juros menores e prazos mais longos para os financiamentos, mas isso vai depender principalmente dos bancos públicos.
Para o economista da Tendências, ainda que se consiga chegar aos preços sugeridos pelo governo, o consumidor seguirá esbarrando na falta de opções de modelos “de entrada”. Na faixa superior, a de hatches compactos, há mais variedade, como Chevrolet Onix, Hyundai HB20 e Volkswagen Polo, todos com preços na faixa de R$ 70 mil a R$ 80 mil.
A maioria das montadoras está focando seus lançamentos em SUVs ou modelos mais equipados porque o lucro é maior. Torres acredita que, dependendo das medidas a serem anunciadas, as fabricantes podem lançar versões mais baratas de SUVs, movimento que, diz ele, já vem ocorrendo nos últimos anos com o aumento da produção local. Para Torres, “o crescimento do mercado de SUVs é uma tendência mundial. Vem ocorrendo também no Brasil há cerca de dez anos e deverá continuar, pois os próprios consumidores estão migrando para esse tipo de veículo, visto como mais espaçoso, versátil, com design moderno e percebido por muitos como mais seguro”. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)