São Paulo está quase parando

O Estado de S. Paulo

 

Quem se desloca de carro pelas ruas e avenidas de São Paulo tem relatado, nos últimos meses, que o trânsito tem piorado a cada dia. A soma de vários fatores, como o recomeço das aulas em fevereiro, o retorno do trabalho presencial em muitas empresas, as fortes chuvas que castigaram a cidade nos primeiros meses do ano, além dos buracos nas ruas que surgem de uma hora para a outra, tem dado aos paulistanos a sensação de que São Paulo está, literalmente, parando. Mas não se trata de uma impressão apenas. De acordo com dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), em março, o índice de lentidão contabilizado na cidade – médias mensais que levam em conta os dias úteis – foi de 155 quilômetros de vias congestionadas, superando o registrado em março de 2019, quando foram observados 153 quilômetros (confira no gráfico na pág. 2). Apenas como comparação, em março de 2022, a média registrada pela CET foi de 97 quilômetros de vias obstruídas. A fisioterapeuta Sabrina Augusto Ferreira, 39 anos, tem vivenciado o aumento da lentidão em sua rotina. Moradora no Tucuruvi, na zona norte da capital, Sabrina se desloca todos os dias até a Vila Pompéia, na zona oeste, onde trabalha, em um trajeto de 13 quilômetros. “Antes, eu levava, no máximo, 45 minutos. Recentemente, cheguei a demorar meia hora a mais, e nem estava chovendo”, diz. Diante disso, ela conta que precisou readequar seus horários e, para chegar antes das 7h, início da primeira aula de pilates no estúdio em que trabalha, tem saído de casa por volta das 5h30. “Desde fevereiro, notei que o trânsito piorou bastante. O que mais prejudica, a meu ver, são as obras, a quantidade de caminhões circulando pelas ruas e a falta de sincronização dos semáforos, que ficam pouco tempo abertos e atrapalham a fluidez do tráfego”, acredita.

 

Falta de planejamento 

 

São muitos os fatores que contribuem para esse cenário de falta de mobilidade enfrentado diariamente pelos paulistanos, como aumento na frota de veículos e caminhões, fuga de passageiros do transporte público para o particular, expansão na procura pelo e-commerce e, consequentemente, crescimento no fluxo de entregas, obras públicas, buracos nas ruas, entre outros motivos que atrapalham a vida de quem precisa se deslocar. Em contrapartida, o que se vê são poucas iniciativas concretas para enfrentar esse desafio. “Muitos dos problemas que enfrentamos atualmente poderiam ter sido evitados se, durante a pandemia, a cidade tivesse investido em espaços para o transporte público, ampliado as faixas exclusivas de ônibus e seus corredores e incentivado mais a mobilidade ativa. Assim, as cidades induziriam a um uso menor do carro. Mas não foi o que aconteceu”, diz Sergio Avelleda, fundador da Urucuia Inteligência em Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana no Laboratório de Cidades Arq. Futuro, do Insper.

 

Mais veículos nas vias e menor adesão ao transporte público agravam o problema

 

A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), em parceria com o aplicativo Waze, passou a medir, desde o dia 3 de março, a condição do trânsito de todos os 20 mil quilômetros de vias da cidade de São Paulo. Antes, a empresa só fazia o monitoramento de cerca de 860 quilômetros, o que representava apenas 5% do total de ruas e avenidas da capital paulista, uma seleção das principais vias. Agora, os dados são apresentados em números absolutos.

 

Uma das possíveis soluções para reduzir a quantidade gigantesca de carros nas ruas seria, como diz o especialista em mobilidade urbana Sergio Avelleda, fortalecer o transporte público e incentivar seu uso pela população que sai às ruas em veículos próprios, em geral, ocupados apenas pelo condutor, com os demais assentos vazios. Mas se observa exatamente o contrário: a fuga de passageiros do sistema de transporte público. Esse fenômeno não foi exclusivo da capital paulista: ele ocorreu em praticamente todas as cidades do Brasil e afetou o sistema por completo. A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), por exemplo, que transportava, antes da pandemia, 1,9 milhão de passageiros por dia útil, agora registra 1,5 milhão (importante lembrar que, atualmente, as linhas 8 e 9 não estão mais sob a responsabilidade da CPTM). O mesmo ocorre com as seis linhas do metrô: se eram 5,2 milhões de passageiros por dia em 2019; atualmente são 4,1 milhões por dia. “Após três anos do início da pandemia, o transporte público coletivo de passageiros ainda não recuperou a demanda que era atendida em 2019”, diz Francisco Christovam, presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), entidade que representa as operadoras de ônibus urbanos e metropolitanos do País. No caso da cidade de São Paulo, Christovam diz que a recuperação do volume de passageiros do sistema por ônibus tem sido lenta. Se, em março de 2020, logo após a decretação da pandemia, a demanda de passageiros era de cerca de 41% do total, na comparação com 2019, em março deste ano, o índice atingiu 93,06%, o melhor nível até o momento. Embora a fuga de passageiros do transporte público tenha se intensificado nos últimos três anos, ela teve início muito antes disso. “Essa queda é estrutural há quase três décadas. A pandemia só intensificou essa redução”, explica. “Desde o início da covid-19, as operadoras de transporte público por ônibus acumulam um prejuízo financeiro total de R$ 36,2 bilhões”, afirma Christovam.

 

Ciclo vicioso

 

Com as dificuldades financeiras e operacionais, fica comprometida a capacidade de investimentos das empresas operadoras de transporte público coletivo em colocar mais ônibus para circular que possam melhorar o atendimento aos passageiros e revertam em qualidade de vida para a população. E, com isso, perde-se o principal apelo para que as pessoas abandonem seus veículos particulares em seus deslocamentos. “Eu deixaria meu carro em casa se o transporte público fosse mais confortável, de fácil acesso e se os ônibus não demorassem tanto”, conta a fisioterapeuta Sabrina Ferreira. De acordo com Glaucia Pereira, pesquisadora e fundadora da Multiplicidade Mobilidade Urbana, o sistema sofre do chamado ciclo vicioso. “Sempre que a tarifa sobe, há perda de passageiros. E, como são os usuários que financiam uma parte importante dele, com a queda, a tarifa tende a se elevar ainda mais”, explica. Para ela, um dos caminhos para atrair mais usuários para o sistema e, consequentemente, melhorar o fluxo viário, é a implementação da Tarifa Zero, tema que surgiu como alternativa no início deste ano, inclusive mencionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), mas desaqueceu. “Essa discussão não prosperou da forma que deveria. Creio que poderia ser implementada a tarifa no período noturno, dos ônibus que rodam da 0h às 5h, horário que atende principalmente a população de baixa renda, como um teste para atrair usuários”, afirma Glaucia.

 

Mais carros e caminhões

 

Outro fator que pode ser responsável pelos congestionamentos é o maior número de veículos e caminhões na cidade. De acordo com dados do Detran-SP, de 2019 a 2023, a frota de veículos na capital paulista aumentou consideravelmente, passando de 6.142.688, em fevereiro de 2020, para quase 6,5 milhões, no mesmo mês deste ano (veja ao lado). Situação semelhante ocorreu com o emplacamento de caminhões, que saltou de 140.383 para 152.307, em 2023, no mesmo período. Ninguém compra carro ou caminhão para deixá-los parados na garagem. “Durante a pandemia, já notávamos que havia intenção das pessoas de trocarem o transporte público pelo carro por causa da contaminação. Agora, na volta à normalidade, ao trabalho e aos encontros presenciais, há dificuldade em recuperar essa demanda para o transporte público”, explica Sergio Avelleda. Para o especialista, a opção que a capital tem para reduzir congestionamentos, levando em conta que não há grandes obras em andamento, como corredores e faixas exclusivas no curto prazo, é gerenciar ou até mesmo restringir o uso do carro particular. “Isso demanda ampliar o espaço para pedestres, cuidar das calçadas com o mesmo zelo que se cuida do pavimento, diminuir o espaço para estacionamento nas ruas e ampliar as ciclovias e conectá-las por toda a cidade, criando uma grande estrutura cicloviária.” Para Glaucia Pereira, o estímulo ao transporte coletivo, aqui já pensando em uma frota que precisa perseguir a eletrificação, a integração da bicicleta aos meios de transporte – permitindo o ingresso da bike e equipando as estações com bicicletários para que os passageiros possam ir pedalando até o trem ou o metrô e sigam com outro modal – e a qualificação das calçadas são fundamentais. “As discussões têm avançado aos poucos. Se não fizermos isso, não vamos mais conseguir respirar nem chegar aos lugares. Está cada vez mais perceptível pela população o impacto negativo do trânsito na vida das pessoas”, finaliza Glaucia. (O Estado de S. Paulo/Daniela Saragiotto e Dante Grecco)