Veículo elétrico e a oportunidade perdida

Diário do Grande ABC

 

Um dos grandes temas atuais relacionados à indústria e seu futuro refere-se à transição da força motriz dos automóveis para motores elétricos, ou híbridos. Esta questão envolve a discussão e as mudanças necessárias na estrutura da cadeia de produção, suas inter-relações, processos produtivos e desenvolvimento de competências tecnológicas.

 

O País e o Grande ABC se inserem nesta questão em torno das mudanças que deverão ocorrer na indústria automobilística instalada em solo brasileiro. Isso inclui os efeitos sobre a cadeia produtiva e as competências tecnológicas e de aprendizagem necessárias para essa transição.

 

Tido como um ícone da modernidade atual, o carro elétrico no Brasil, no período atual, não será evento inédito. Em 1974 a fabricante de Veículos Gurgel, empresa de capital nacional, lançou projeto de carro elétrico intitulado Itaipu. Apesar do menor custo por quilômetro rodado, a autonomia de 60 a 80 quilômetros foi um dos fatores que inviabilizaram o projeto, junto a demora para recarga das baterias, em torno de dez horas.

 

Apesar deste primeiro modelo não ter avançado além do protótipo, no início da década de 1980 a Gurgel lançou o E-400 atendendo ao desafio proposto pela Eletrobrás para renovar sua frota. Com capacidade para transportar 400 kg, autonomia de até 80 km e velocidade máxima de 75 km/h, o Veículo superou as metas do desafio. Como resultado, o governo federal encomendou o Veículo para compor as frotas da Eletrobrás, tonando-se o primeiro carro elétrico produzido em série no Brasil. No ano seguinte, a empresa lançou versão um pouco maior, o E-500.

 

Contudo, à exceção deste estímulo do início da década de 1980 via compras públicas, não houve mais fomento ao desenvolvimento do Veículo elétrico no Brasil, levando ao encerramento da produção. Teria sido mais proveitoso ao desenvolvimento do setor automobilístico se a empresa de capital nacional recebesse estímulos ao desenvolvimento produtivo e tecnológico? Se política pública tivesse encarado o desafio e os riscos de fomentar o desenvolvimento tecnológico para viabilizar o carro elétrico nacional, estaríamos hoje em patamar competitivo tecnológico mais elevado? O desenvolvimento desta matriz teria resultado em transbordamentos para outras aplicações, como a produção de Veículos para transporte de massa? Os efeitos para o próprio desenvolvimento econômico da economia brasileira teriam sido promissores?

 

É claro que não temos como responder com precisão as questões acima. Mas, no mínimo, precisamos reconhecer que perdemos uma oportunidade, destas que não bate à nossa porta todos os dias.

 

Faltou fomento

 

Com relação ao custo para fomentar o desenvolvimento produtivo tecnológico, especificamente relacionado ao caso acima, é importante reconhecer que é inerente a qualquer política pública. É fundamental não observar apenas custos de curto prazo, mas os efeitos potenciais de longo prazo, que podem e devem ser amarrados a metas a serem perseguidas pelos beneficiários das políticas de fomento.

 

Na segunda metade da década de 1980, a mesma empresa, Gurgel, tentou continuar operando no mercado com produção de veículos a combustão. Como estratégia, requisitou ao governo uma política de redução do imposto de produção para produzir carros com motor abaixo de mil cilindradas. Foi-lhe negado. Sem capacidade de competir com as multinacionais instaladas no País, e sem estímulos, a Gurgel encerrou as atividades.

 

Contudo, na primeira metade da década de 1990, as multinacionais do setor automobilístico instaladas no Brasil receberam estímulo semelhante para produzir carros abaixo de mil cilindradas, o que fomentou a produção dos “veículos mil” e criou novo segmento no mercado. Juntamente com a expansão do crédito após a estabilização da inflação em meados da década de 1990, “os mil” contribuíram para expansão do mercado de automóveis no Brasil.

 

O fomento à produção dos “carros mil” gerou custos para operação da política pública. Entretanto, em nenhum momento este esforço de política pública se preocupou com o desenvolvimento de empresas de capital nacional nem com o desenvolvimento tecnológico no País.

 

A título de breve comparação, por caminhos diferentes, a maioria dos países dos Tigres Asiáticos seguiu a receita de desenvolver o setor produtivo de capital nacional, aliado ao desenvolvimento produtivo e tecnológico. Trajetória, aliás, percorrida pelos países hoje desenvolvidos nos séculos anteriores.

 

Sem precisar buscar outros exemplos em outros países, o relato deixa evidente que as decisões de política pública têm efeitos para o longo prazo. A sociedade brasileira, incluindo políticos, trabalhadores, empresários, entre tantos outros, terão maturidade suficiente para aderir e defender uma política produtiva tecnológica de longo prazo? Teremos estruturas adequadas para garantir sua execução?

 

Delegar a expectativa de futuro à existência de um único tiro certeiro, ao surgimento de um unicórnio encantado ou a algum outro lance de sorte ou acaso parece mais arriscado do que assumir o desafio de defendermos e colocarmos em prática uma política de fomento produtivo e tecnológico de longo prazo. (Diário do Grande ABC/Sandro Renato Maskio, coordenador de Estudos do Observatório Econômico e professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Metodista de São Paulo)