Ferrari e Lamborghini, ícones do estilo automotivo italiano, lutam para se tornarem elétricas

O Estado de S. Paulo/The New York Times 

 

Os meninos saindo aos montes de uma escola em um vilarejo da Itália ficaram em silêncio quando um Lamborghini se aproximou com seu motor de 12 cilindros, alardeando sua chegada. Então, à medida que a criatura em formato de cunha roncava os motores pelo pátio da escola, eles começaram a aplaudir, levantando o punho até a altura do tórax como se comemorassem uma vitória e saltando.

 

Era uma expressão espontânea da emoção que a montadora esportiva italiana inspira, e que motiva aqueles que podem pagar a desembolsar centenas de milhares de dólares, em alguns casos milhões, para adquirir um.

 

Mas a Lamborghini, a Ferrari e um grupo de outras empresas que fabricam os chamados supercarros – uma categoria vagamente definida de veículos que custam centenas de milhares de dólares e oferecem desempenho no mesmo nível de carros de corrida – enfrentam uma ameaça existencial. De forma inevitável, a indústria automobilística está avançando em direção aos carros elétricos, uma tendência da qual essas montadoras não podem escapar. Elas agora estão tentando encontrar uma solução para projetar carros esportivos elétricos que inspirem a mesma paixão e mereçam os mesmos preços.

 

A Tesla já contestou as alegações da Ferrari e da Lamborghini de estarem na vanguarda do design automotivo. A montadora foi pioneira em veículos elétricos, e seu Model S Plaid pode acelerar para quase 100 km/h em pouco mais de dois segundos, mais rápido do que qualquer Ferrari ou Lamborghini, de acordo com os avaliadores da revista Motor Trend.

 

“Para os fabricantes de supercarros, a questão é: será que eles também serão capazes de ser super na liderança do mundo em eletrificação?”, disse Karl-Thomas Neumann, ex-CEO da montadora alemã Opel, que está no Conselho da OneD Battery Sciences, fornecedora da Califórnia de tecnologia para carros elétricos.

 

“Se você estiver apenas construindo um supercarro e colocando um logotipo da Ferrari nele, isso não é o bastante”, disse Neumann. E a empresa está “muito atrasada” para o negócio de carros elétricos, disse ele.

 

A Ferrari oferece um modelo híbrido “plug-in”, o Stradale, desde 2019, mas não lançará um carro totalmente elétrico até 2025. A empresa, com sede em Maranello, na Itália, explicou melhor seus planos em um evento para investidores este mês, dizendo que produzirá motores elétricos e outras peças-chave mantendo sua tradição de perícia e exclusividade.

 

“Uma Ferrari elétrica será uma Ferrari de verdade”, disse o CEO Benedetto Vigna em uma entrevista antes da apresentação.

 

A Ferrari também disse que, seguindo sua tradição, pegaria emprestado tecnologia de sua formidável equipe de corrida. Porém a empresa não compete na Fórmula E, uma categoria de automobilismo semelhante à Fórmula 1, mas apenas para carros elétricos. Vigna se recusou a dizer se há algum plano para a empresa participar do campeonato.

 

A Lamborghini, que pertence à Volkswagen e tem sede no vilarejo de Sant’Agata Bolognese, colocará no mercado seu primeiro modelo híbrido “plug-in” em 2023, e um carro totalmente elétrico em algum ponto da segunda metade da década.

 

O fascínio pelos supercarros italianos está profundamente associado com o som e a potência dos motores de combustão interna. Acredita-se que o renomado maestro austríaco Herbert von Karajan tenha dito certa vez que um motor de 12 cilindros da Ferrari alcançava “uma harmonia que nenhum maestro poderia tocar”.

 

Os motores elétricos são por natureza sotto voce (ruído quase inaudível).

 

“O som é um ponto forte importante para esses veículos”, disse Andy Palmer, ex-CEO da Aston Martin que agora é CEO da Switch Mobility, fabricante de ônibus elétricos. “O carro esportivo como conhecemos continua a existir se não conseguimos distingui-lo com base no som?”

 

A questão é de interesse para mais do que apenas algumas pessoas ricas. O orgulho e o prestígio italianos estão em jogo.

 

Embora grande parte do resto da indústria automobilística italiana tenha se tornado quase irrelevante – a participação de mercado da Fiat na Europa caiu para apenas 4% -, os aficionados por supercarros costumam desembolsar centenas de milhares de dólares por Ferraris e Lamborghinis e muitas vezes esperam um ano pela entrega. Os modelos mais exclusivos têm preços na casa dos milhões.

 

As duas marcas representam a proeza industrial da Itália, que com frequência é ofuscada por seus problemas políticos.

 

Ambas também são muito lucrativas. A Ferrari, que é negociada na bolsa de valores, mas controlada pela poderosa família italiana Agnelli, registrou um lucro líquido de 240 milhões de euros (US$ 250 milhões) nos primeiros três meses de 2022, com vendas de US$ 1,2 bilhão.

 

A Lamborghini contribuiu com 180 milhões de euros em lucros antes da dedução dos impostos para o balanço final da Volkswagen durante o primeiro trimestre, com vendas de 592 milhões de euros. No ano passado, a Ferrari vendeu 11 mil carros, enquanto a Lamborghini vendeu 8.300. As taxas de retorno de dois dígitos das duas empresas sobre as vendas são excepcionalmente altas para a indústria automobilística, que tem margens de lucro conhecidas por serem baixas.

 

A mudança é perceptível na região perto de Bolonha, uma área rural conhecida como Motor Valley. As sedes da Ferrari e da Lamborghini estão a cerca de meia hora de distância dali.

 

No ano passado, a Ferrari quebrou a tradição quando nomeou Vigna como CEO. Embora seja um fã de carros que aos 14 anos fugiu de casa durante vários dias para ir ver uma corrida de Fórmula 1, Vigna nunca havia trabalhado em uma empresa automobilística. Antes, ele era um executivo de alto escalão da STMicroelectronics, fabricante de semicondutores. Sua nomeação sinalizou a importância da eletrônica para o futuro da Ferrari.

 

“Precisávamos de um CEO com uma compreensão profunda das tecnologias que estão mudando não apenas a indústria automobilística, mas o mundo em geral”, disse John Elkann, herdeiro da família Agnelli e presidente da Ferrari, aos investidores neste mês.

 

Vigna, cujos clientes na STM incluíam Apple e Tesla, traz para a Ferrari conexões fortes no mundo da tecnologia. “Se eu precisar de alguns contatos com um parceiro ou fornecedor em potencial, é fácil para mim ter acesso às pessoas certas”, disse ele.

 

A mudança para as baterias impõe vários desafios à Ferrari e à Lamborghini. Uma característica dos supercarros é a altura pequena, o que reduz a resistência ao vento. O teto do carro mal chega à cintura de uma pessoa em pé. Um desafio a ser vencido é alcançar a mesma silhueta com baterias, que costumam ficar embaixo do compartimento dos passageiros.

 

Outra característica é a exclusividade. Os compradores talvez esperem facilmente um ano pela entrega. Os carros são itens de colecionador que muitas vezes aumentam de valor com o tempo. Ferraris vintage foram vendidas por mais de US$ 20 milhões.

 

Mas uma Ferrari ainda dá a sensação de exclusividade quando um Tesla é mais veloz? Vigna defendeu que alguns centésimos de diferença em um segundo na aceleração de 0 a 100 km/h não eram a única coisa que importava. Ele comparou dirigir uma Ferrari a andar de montanha-russa. É menos a velocidade e mais a sensação.

 

“Ferrari é experiência”, disse ele.

 

Os carros elétricos são conhecidos por sua aceleração suave e seu funcionamento silencioso. Os compradores de um Lamborghini Aventador ou uma Ferrari SF90 Spider não pagam mais de US$ 500 mil por isso. Eles querem uma sensação de potência bruta.

 

Quem dirige um Lamborghini está sentado a pouquíssimos centímetros da estrada em seu cockpit rebaixado, ciente de cada imperfeição no asfalto. O enorme motor está logo atrás dos assentos, trovejando nos ouvidos dos passageiros. Sua condução é precisa, mas firme, exigindo concentração intensa. É uma experiência sensorial completa que faz com que uma rotatória em um vilarejo italiano pareça uma curva apertada do Grande Prêmio de Mônaco.

 

“O carro dá a sensação de que você é, como motorista, um herói”, disse Rouven Mohr, diretor de tecnologia da Lamborghini. Recriar esse sentimento em um carro elétrico, afirmou: “é a nossa tarefa principal”.

 

As baterias dão algumas vantagens para os designers de supercarros. Os carros elétricos não precisam de eixos de transmissão longos e engrenagens volumosas. Os motores elétricos são muito menores que os motores de combustão interna. As peças podem ser organizadas de modo a aperfeiçoar a distribuição e a gestão do peso.

 

Cada pneu pode ter seu próprio motor elétrico e ser programado para funcionar em velocidades ligeiramente diferentes para maximizar a condução em uma curva. A Lamborghini está considerando equipar os carros com inteligência artificial que aprenderia as preferências e o estilo de direção do motorista e ajustaria a condução do veículo de acordo com eles.

 

“O carro entende o que você quer”, disse Mohr.

 

Por enquanto, a clientela exclusiva de supercarros não está clamando por um carro elétrico.

 

“Ninguém ainda ofereceu algo que façam eles dizerem: ‘Nossa, isso é bem mais legal que meu atual carro com motor de combustão’”, disse Mohr.

 

Outras empresas estão tentando, apesar de até agora estarem produzindo supercarros elétricos em números muito pequenos. A Rimac Automobili, empresa Croata cujos investidores incluem a Porsche, a Hyundai e a unidade de private equity do Goldman Sachs, lançou o Nevera, um carro esportivo elétrico que a empresa afirma ser capaz de acelerar de 0 a 100km/h em menos de dois segundos.

 

A Lotus Cars, fabricante britânica de carros controlada pelo Zhejiang Geely Holding Group da China, vende um modelo elétrico, o Evija. Ele e o Nevera custam bem mais que US$ 2 milhões. A Lotus, cujos outros modelos custam muito menos que Ferraris ou Lamborghinis, disse que venderá apenas carros elétricos a partir de 2028. (Uma curiosidade: a Lotus forneceu peças-chave para o primeiro modelo produzido pela Tesla, o Roadster).

 

Outras concorrentes próximas estão avançando na mesma velocidade. Na Grã-Bretanha, a Aston Martin planeja apresentar seu primeiro veículo totalmente elétrico em 2025. A McLaren, também britânica, não deve oferecer um modelo que funcione apenas com baterias antes de 2028.

 

Tanto a Ferrari como a Lamborghini não planejam parar de fabricar carros com motores de combustão interna. Mas elas estão sob crescente pressão por parte dos reguladores para reduzir o consumo de combustível, sobretudo na Europa. Um cupê Lamborghini Aventador de dois lugares faz em média 4,5 quilômetros por litro, ou metade da economia de combustível de uma caminhonete de tamanho normal, de acordo com Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. (Aficionados argumentam que a maioria das pessoas dirigem seus supercarros apenas alguns milhares de quilômetros por ano, portanto o consumo de combustível é baixo).

 

Compradores ricos mais jovens podem não querer ser vistos em um carro tão extravagante.

 

“Estamos recebendo clientes mais jovens todos os dias”, disse Stephan Winkelmann, CEO da Lamborghini. Eles querem desempenho, afirmou, mas também “paz de espírito”. (O Estado de S. Paulo/The New York Times/Jack Ewing, tradução de Romina Cácia)