O Estado de S. Paulo
Nos últimos quatro anos, o Mercosul foi relegado a um perigoso segundo plano. Desde a campanha eleitoral, Paulo Guedes mostrou desinteresse pelo bloco regional integrado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Já como ministro da Economia, declarou que o subgrupo não seria prioridade para o novo governo, com a justificativa de que era restritivo e deixava o Brasil prisioneiro de alianças ideológicas. Mais recentemente, disse que o Mercosul não estava correspondendo às expectativas e que o Brasil iria levar adiante planos para a modernização do grupo e que quem não estivesse de acordo que se retirasse. Nesta linha, o Brasil propôs a redução de 20% da Tarifa Externa Comum (TEC), com forte oposição da Argentina, e acabou reduzindo unilateralmente 10% da TEC para uma lista de 87% de produtos, mantendo fora o setor automotriz e o sucroalcooleiro. O Uruguai, no mesmo diapasão, propôs a flexibilização das negociações para permitir que os países-membros pudessem avançar individualmente entendimentos para a conclusão de acordos comerciais, com o apoio inicial de Paulo Guedes.
Agora, surge a informação de que, à revelia do Mercosul, o Brasil quer fazer novo corte na TEC. A ideia gerada no Ministério da Economia é reduzir em mais 10% as alíquotas do Imposto de Importação de grande parte dos produtos transacionados com países de fora do bloco, sem o acordo dos parceiros do bloco, com a justificativa – sem sentido para a maioria dos produtos – de “proteção da vida e da saúde das pessoas”, no dizer oficial. Na realidade, o fim é político e tem que ver com as eleições de outubro: busca-se reduzir o preço dos produtos para tentar conter a subida da inflação, agravada pelas consequências da guerra na Ucrânia. A medida será inócua, mas trará mais desgaste para o Brasil.
Para quem não sabe, o Tratado de Assunção prevê que as medidas de política comercial propostas só podem ser implementadas com o consenso de todos os países-membros e que a coordenação das negociações cabe aos Ministérios das Relações Exteriores. É verdade que o Itamaraty, nos últimos anos, vem perdendo competência em áreas que tradicionalmente coordenava, como as negociações comerciais e meio ambiente, por exemplo, mas não consta que o tratado que criou o Mercosul tenha sido alterado.
A ação isolada do Ministério da Economia deve estar causando sério incômodo ao Itamaraty não só pela descoordenação interna e, inclusive, com o setor privado, pelo descumprimento do Tratado de Assunção, mas sobretudo pelo fato de as autoridades econômicas desconsiderarem os aspectos estratégicos do Mercosul para o Brasil. O Mercosul não é apenas um acordo econômico e comercial, mas tem uma visão de médio e longo prazos importante para os interesses do setor privado, em especial do industrial.
O Mercosul passa, nos dias que correm, por um período de grandes turbulências e dificuldades. Embora abalado e sem perspectiva, a vontade política que impulsionou a criação do Mercosul em 1991 ainda está viva. O Mercosul, assim, não vai desaparecer, pois nenhum dos países-membros assumirá o ônus político de pedir sua dissolução. A questão é saber como o Mercosul poderá, nos próximos anos, servir aos interesses de cada um de seus membros, se permanecerá irrelevante ou se transformará numa alavanca para o progresso da região.
No caso do Brasil, o descaso com o Mercosul não ocorre por acaso. Ele se insere no quase total abandono das relações do Brasil na América do Sul. Considerações ideológicas e falta de uma visão pragmática a respeito dos acontecimentos nos últimos anos no tocante ao lugar do Brasil no mundo, na prática, isolaram o País do seu entorno geográfico, uma de suas prioridades estratégicas, segundo a Política Nacional de Defesa. Algumas decisões podem ser vistas, mesmo, como contrárias ao interesse brasileiro, como o fim da Unasul.
A guerra da Rússia na Ucrânia inaugura uma nova era na geopolítica e na geoeconomia global. A tendência é o mundo ficar dividido entre o Ocidente e a Eurásia (China e Rússia). O governo dos EUA já está definindo políticas comerciais restritivas para a China e para “países pouco amigos”, que mantiverem comércio e relações com o outro lado. O fortalecimento do regionalismo deverá ser uma das consequências da guerra. Com a redução do ritmo da globalização e o novo ímpeto de medidas restritivas e protecionistas, em decorrência de medidas nacionalistas e de segurança, o Brasil deveria formular uma política comercial ativa, inclusive com o estabelecimento de cadeias produtivas regionais e respeito ao meio ambiente. A América do Sul já forma uma área de livre-comércio com pouco aproveitamento de parte das empresas nacionais. A crescente presença da China na América do Sul, em concorrência com produtos brasileiros, e o pouco interesse de empresas norteamericanas em desenvolver negócios e investir na região são outros fatores que uma política externa do novo governo deverá levar em conta.
Espera-se que o governo que vai se iniciar em 1.º de janeiro de 2023 leve em consideração esta realidade e coloque o Mercosul novamente como um projeto de grande valor estratégico e, por isso, uma prioridade para os interesses brasileiros, sob a coordenação do Itamaraty. (O Estado de S. Paulo/Rubens Barbosa, primeiro coordenador nacional do Mercosul, presidente do IRICE)