Montadoras deixam de produzir 2,5 milhões de carros no Brasil

O Tempo 

 

Há cerca de dez anos a indústria automotiva brasileira se destacava mundialmente por estar entre os cinco maiores produtores de veículos do planeta. Para termos uma ideia desta dimensão, em 2013 alternávamos com a sempre poderosa Alemanha a quarta colocação neste importante ranking.

 

Fechamos aquele ano com o expressivo número de 3,6 milhões de unidades produzidas e com ótimas perspectivas de ultrapassarmos outros players e consolidarmos em uma honrosa terceira posição, atrás, apenas dos Estados Unidos e da insuperável China.

 

Queda vertiginosa

 

Infelizmente nada disso se concretizou e fomos, ano a ano, perdemos nosso espaço neste cenário para onde estão voltados os holofotes da economia mundial.

 

Ainda que pese o fato de a produção brasileira ter crescido 11,6% em 2021, produção de 2,2 milhões de unidades, segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), nosso mercado está muito distante dos 2,9 milhões de modelos montados em 2019.

 

A associação afirma que no Brasil, oitavo mercado global, a previsão também é de retomada para este ano, com crescimento de 9,4% na produção ante 2021 – 2,46 milhões de unidades e nossa capacidade de produtiva de 4,7 milhões.

 

Ociosidade

 

Em números absolutos temos uma capacidade de produção ociosa em cerca de 2,5 milhões e nos últimos dois anos a situação se agravou por vários fatores. Entre eles, o encerramento das atividades fabris da montadora Ford, que já havia desativado a fabricação de caminhões da marca e não conseguiu transferir os ativos industriais da planta de São Bernardo do Campo (SP) a outro fabricante e acabou por paralisar a operação.

 

Pouco depois anunciou que não produziria mais veículos no Brasil e comercializaria apenas produtos importados. Como consequência fechou as portas de três fábricas, a de automóveis em Camaçari, na Bahia, a dos jipes Troller, em Horizonte, no Ceará e uma terceira de motores no estado de São Paulo.

 

Inventivo

 

Um programa de incentivos à produção nacional foi lançado durante o governo Dilma, o Inovar-Auto, que oferecia subsídios tributários aos fabricantes que aderissem e montassem seus veículos no Brasil.

 

Nesta leva os até então importadores de carros sofisticados, luxuosos e caros, se apressaram e construíram linhas de montagem no país.  Da lista fizeram parte as alemãs Audi, BMW e Mercedes-Benz, a inglesa Jaguar Land Rover e duas chinesas, a Chery e a JAC Motors.

 

Essa última chinesa ficou apenas na promessa, a outra foi erguida em Jacareí (SP) e recentemente adquirida pela CAOA, o que lhe garantiu a manutenção da produção. A planta da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP) foi vendida para a também chinesa Great Wall Motors e se prepara para a produção de automóveis com motores híbridos e somente a combustão. As demais citadas seguem montando em CKD (peças e componentes que chegam pré-montados) um baixo volume de veículos.

 

Toyota

 

O anúncio do fechamento da primeira planta da japonesa Toyota em São Bernardo do Campo (SP), previsto para 2023, em nada altera volume de produção e sim facilitará a operação na totalidade já que os processos estarão mais próximos das unidades fabris que a marca mantém em Sorocaba (SP).

 

Outras movimentações que acontecem concomitantemente a tudo até agora relatado contribuem para um novo rearranjo do mercando em tempos de mudança da matriz energética. Nossa reportagem entrevistou o fundador da Bacellar Advisory Boards Automotive & Mobility, Ricardo Bacellar, que atua no mercado como Conselheiro Consultivo, que contextualizou um panorama do que estamos vivendo na indústria.

 

Transformações

 

“O que estamos observando são reflexos de um processo de transformação da indústria automotiva que já comentamos há muito tempo, muito antes da pandemia, mas este advento trouxe uma repercussão muito grande para o cenário automotivo na totalidade, não só brasileiro. Quando colocamos a lente mundial, podemos compreender com mais clareza determinados fatos. Essa janela envolvendo o fechamento de fábricas ou a interrupção temporária da produção e até alguns reajustes de estratégias, já vem acontecendo antes da pandemia. Localmente o primeiro grande evento foi a decisão da Ford de transformar completamente sua estratégia global, decidindo fechar suas operações não sós no Brasil, mas também em outros países, talvez a Índia seja outro grande exemplo”, revela.

 

Expansão de fronteiras

 

E segue Bacellar. “Importante ressaltar que esta ação se deu sem correlação com falta de credibilidade ou de aposta em seu negócio no Brasil, a Ford precisava de fortalecer sua estratégia de eletrificação, sem contar investimentos em mercados mais promissores como o da China. E como montadora não fábrica dinheiro, era preciso tirar aportes de alguns lugares para colocar em outros. Mas vimos outros movimentos mais recentes, como a paralização temporária da fábrica da Audi no Paraná, que voltou a montar em CKD pequenos volumes. Mas, em contrapartida, a chegada da Great Wall Motors no Brasil reforçando que nosso mercado continua com enorme potencial. É preciso ressaltar um olhar diferenciado que grandes montadoras chinesas estão apontando para a expansão de novos mercados e expandir suas fronteiras, e o Brasil muito interessa a eles”, analisa Bacellar.

 

Crise dos semicondutores

 

E com visão otimista revela que “não vou me surpreender se ainda este ano ou no próximo outros anúncios de outras marcas ocorram. No geral, além dos motivadores de estratégia mundial temos também outros fatores advindos da pandemia como os lockdowns a mudança de comportamento do consumidor em relação ao automóvel as várias crises de commodities, talvez a pior de todas seja a dos semicondutores que segue gerando um grande limitador de produção. Isso reflete em grandes filas, não só pessoas físicas como os grandes compradores como locadoras estão com uma demanda reprimida provavelmente superior a 400 mil unidades e isso era reflexo no mercado de seminovos, que deixou de ser abastecido justamente pelas locadoras que todo ano renovava suas frotas e colocavam esse enorme contingente de veículos no mercado”, afirma.

 

Guerra na Ucrânia

 

“A falta de veículos novos e a falta de oxigenação do mercado de seminovos por parte das locadoras gerou esse desequilíbrio entre procura e oferta que vai gradualmente se normalizando e acredito que até o final deste ano e início do próximo à situação estará mais normalizada. Mas outro fator surpreendente é o efeito desta guerra entre Ucrânia e Rússia que mexeu com o preço do combustível principalmente. Lembrando que o preço do combustível já vinha sofrendo uma pressão muito grande. Em nossa pesquisa automotiva de 2021, publicada no final do terceiro trimestre começo do quarto, os consumidores já sinalizavam que o preço do combustível era uma preocupação em uma indicação inédita em nossas pesquisas”.

 

Mobilidade

 

“Quando falamos que não só no Brasil era comprar um automóvel e também mantê-lo, o custo de propriedade era uma queixa recorrente, não se falava disso em relação a combustível e alta de peço veio se somar a esta preocupação do brasileiro. Sem falar que dificulta as operações dos serviços de mobilidade, como exemplo os aplicativos estão tendo de alterar seus modelos de negócio para conseguir manter seus motoristas que estão insatisfeitos de deixando de trabalhar. Então, para terminar o que se vê é uma série de inúmeras iniciativas de reposicionamento face ao cenário no entorno do negócio da indústria automotiva”.

 

Busca de eficiência

 

“Mais recentemente o anúncio de reposicionamento da fábrica da Toyota, na verdade, é outro contexto, muito está mais ligado a uma eficiência operacional em conseguir mais sinergia entre suas plantas do que algum tipo de crise, muito pelo contrário. A Toyota assim como outras vem realizando questão de fortalecer seu posicionamento de investimento aqui no país. Entendo que as sinalizações são bastante positivas mesmo olhando no horizonte a questão de veículos elétricos e penso que a chegada da Great Wall esta quebrando um grande paradigma com relação à produção destes veículos aqui no Brasil. Eles devem começar com os híbridos, aliás uma aposta que a Toyota já efetuava a bastante tempo e outras montadoras como Stellantis e a Volkswagen já apontam para este caminho. Portanto, estamos em um contínuo de um grande processo de transição da indústria vivendo novos capítulos”, termina o fundador da Bacellar Advisory Boards Automotive & Mobility. (O Tempo/Raimundo Couto)