Montadoras lucram 315% mais na pandemia mesmo vendendo menos carros

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O brasileiro que se diz “apaixonado por carros” é um sujeito para o qual não falta empatia. O amor pelo automóvel faz com que ele se sinta condoído com a crise dos semicondutores, pela alardeada carga tributária altíssima – “a maior do mundo”, gostam de dizer – e até mesmo com ilusório trabalho escravo que as montadoras chinesas imporiam aos seus operários.

 

De modo que quando um Chevrolet Onix salta de R$ 49 mil (R$ 29.990, quando foi lançada a primeira geração, em 2012) para quase R$ 74 mil e quando um Fiat Mobi pula de R$ 31.900 para R$ 65 mil, ninguém se incomoda. Pior, muitos defendem os aumentos como legítimos e, enquanto um outro punhado de enamorados abre a carteira e contrata financiamentos com taxas acintosas, as montadoras enchem o cofrinho.

 

Como diz o ditado, “enquanto houver cavalo, São Jorge não andará a pé” e enquanto o consumidor se inclina mais aos fabricantes do que ao próprio bolso, o jornal “Automotive News Europe” divulga que o “lucro operacional – apurado antes de juros e impostos – das maiores companhias europeias, norte-americanas e sul-coreanas mais que dobrou, em 2021, ultrapassando a casa dos 115 bilhões de euros”, o que equivale a mais de R$ 600 bilhões (apenas para efeito comparativo, toda a arrecadação federal brasileira alcançou R$ 1,8 trilhão ou três vezes mais, no ano passado).

 

Longe de ter dó de seus compatriotas, já que a arrecadação brasileira tem que dar conta de todas as despesas de um país com 212 milhões de habitantes, enquanto os ganhos bilionários das montadoras são fracionados apenas para seus acionistas, o tupiniquim apaixonado não vai se sentir traído ao saber que o lucro líquido, limpinho, desses mesmos grupos cresceu 315% em plena pandemia e chegou a mais de 90 bilhões de euros (o equivalente a quase R$ 473 bilhões).

 

Ou seja, se as gigantes da Europa, Estados Unidos e Coreia do Sul tiverem, juntas, 100 mil acionistas e distribuírem apenas 30% desta margem em dividendos, cada um deles embolsa R$ 1,3 milhão.

 

Fato é que o atual descompasso entre a oferta e a demanda ocorre em um momento extraordinário para as montadoras. “Isso cria uma janela de oportunidade para as marcas aumentarem os preços de 3% a 6%, na Europa”, descreve o chefe de pesquisas de uma das seguradoras de crédito do grupo Allianz, Maxime Lemerle – no Brasil, os reajustes vão de 50% a astronômicos 100%, na medida em que o consumidor aceita tudo. “Todas as estrelas estão alinhadas, neste sentido”, completou.

 

“Percebemos que o aumento de nossos custos pode ser precificado, repassado, e manteremos esta estratégia”, disse o presidente-executivo (CEO) da Volkswagen, Herbert Diess, durante a teleconferência de apresentação dos resultados do grupo a seus acionistas, no último trimestre de 2021. De acordo com o jornal alemão “Handelsblatt”, os aumentos vão muito além da inflação

 

Fim dos descontos

 

Outro fator que, em termos globais, implicou na disparada dos zero-quilômetro foram os baixos estoques. “Para as montadoras tradicionais, que não adotam o modelo de vendas diretas da Tesla, a maior margem se deu, também, pelo fim dos descontos”, avalia o diretor de pesquisa automotiva do banco de investimentos Jefferies, Philippe Houchois.

 

“Os revendedores deixaram de atrair seus clientes com uma guerra de preços, na medida em que seus estoques foram baixando e isso foi muito evidenciado nos Estados Unidos, onde – a exemplo do Brasil – o comprador prefere fechar o negócio em um concessionário”, completou. De acordo com Houchois, o tempo médio de entrega da Ford, que era de 75 dias, baixou para 50 dias.

 

Como já adiantamos aqui, neste espaço, o conflituoso casamento entre fabricantes e revendedores está por um fio e resta cristalino que os concessionários serão descartados, a médio e longo prazos.

 

A própria Ford já avisou que, a partir de agora, manterá os estoques no mínimo. “Aprendemos a operar nosso negócio de forma mais enxuta”, afirmou o diretor financeiro da marca, John Lawler. “Nosso objetivo, agora, é que ¼ das vendas sejam diretas, pela internet. Até porque, tirando o comprador das concessionárias, agilizamos nossa produção e reduzimos os catálogos de cada linha, descomplicando a parte industrial”, concluiu.

 

Já para a diretora norte-americana de operações da marca, Lisa Drake, a crise “foi uma bênção disfarçada, que ajudou a reduzir custos”. Não foi à toa que, só no último trimestre de 2021, a Ford lucrou mais de US$ 560 milhões (o equivalente a R$ 2,6 bilhões).

 

O leitor desapaixonado nota que o incremento dos lucros das montadoras advém, basicamente, dos cortes absurdos, de um rearranjo do negócio e, obviamente, da precarização do produto. Mas o amor cega e, flechado por Cupido, o brasileiro passa por cima de tudo para viver sua paixão com o carro.

 

“É um trabalho que visa a eficácia, sem glamour nem sensualidade. Nós, simplesmente, suprimimos versões que não vendiam a contento, deixamos de ofertar algumas opções de motorização e descontinuamos vários modelos em países onde a procura não atendia nossas expectativas”, confessou o presidente-executivo (CEO) do grupo que abriga a Renault, Luca de Meo, em uma conferência com analistas.

 

“No caso do crossover Arkana, ofertado na Europa, duas versões passaram a responder por 85% das comercializações e, a partir daí, aumentamos os preços entre 10% e 20%, em até 5.000 euros – o equivalente a mais de R$ 26 mil”.

 

Remessa de lucros

 

O sujeito tem que estar, realmente, muito enamorado para não perceber que, falando diretamente, as montadoras estão furando os olhos dos clientes – mas para quem já é cego de amor, os olhos têm apenas efeito decorativo na face e nada mais.

 

Prova disso é que foi a receita, que advém diretamente das vendas, que impulsionou o aumento da lucratividade, crescendo entre 12%, na Europa, e 15%, na Coreia do Sul. Já no Brasil, as remessas de lucros para as matrizes foram as maiores dos últimos oito anos, chegando a quase US$ 860 milhões (o equivalente a R$ 4 bilhões).

 

Ou seja, apesar de o brasileiro estar cada dia mais pobre, ele bancou, voluntariamente, o envio de 33 prêmios da Mega Sena para as sedes estrangeiras das multinacionais que aqui operam, inclusive, com quadros cada vez mais reduzidos.

 

Outro fator que fomenta os lucros, mas que os consumidores e até mesmo os “entendidos” ignoram, a sinergia decorrente da fusão de gigantes do setor também colaborou para os ganhos bilionários.

 

“A redução de custos, na Stellantis, superou o estimado em seu primeiro ano após a criação da companhia – a partir do casamento da PSA Peugeot-Citroën e da Fiat Chrysler Automobiles (FCA). A associação gerou uma economia líquida de 3,2 bilhões de euros (quase R$ 17 bilhões), cifra bem acima do que esperávamos”, declarou seu presidente-executivo (CEO), Carlos Tavares.

 

Acostumadas a chorar de barriga cheia, as gigantes do setor automotivo vêm adiantando que, em 2022, não repetirão o desempenho financeiro do ano passado. Apesar de a conflagração na Ucrânia estar praticamente encerrada, elas reclamam das paralisações em função das tensões que atingiram a cadeia de suprimentos.

 

“A guerra pode causar um novo choque na economia global, assim como muitos países estão lidando com níveis de inflação que não eram registrados há décadas”, analisa Maxime Lemerle, do grupo Allianz. Nesta semana, a própria Allianz revisou sua previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) na zona do euro, de 3,8% para 2,6%, bem como sua projeção de inflação, de 3,8% para 5,5%. “O poder de compra das famílias deve cair de forma acentuada”, prevê Lemerle sem, no entanto, dizer o óbvio:

 

Que quando o romance entre um ser humano e um veículo automotor chega ao fim, o tolo que baba de amor é quem paga a fatura do divórcio. (Portal Mobiauto/Homero Gottardello)