AutoIndústria
A crise da oferta de semicondutores tem limitado a produção e vendas de veículos em todo o mundo há mais de um ano. Pelo que transcorre ao longo do primeiro bimestre, 2022 será menos ruim nesse sentido, especialmente a partir do segundo semestre, quando, segundo especialistas, o fornecimento de chips deva ser regularizado em boa parte dos mercados.
Não será diferente no Brasil, talvez apenas com algum pequeno atraso com relação aos grandes polos produtores de veículos, naturalmente de maior interesse para os fornecedores de componentes. “Mas o ano que vem não falaremos de chips”, assegura Orlando Merluzzi, sócio da MA8 Consulting, que também acumula longa carreira como executivo em várias montadoras.
A produção e mercado brasileiros de veículos, importante comparar, representaram somente cerca de 3% da indústria mundial em 2021 e essa fatia dificilmente será ampliada nos próximos anos, no entender do consultor. Ao contrário, o risco de diminuir é considerável. Isso porque, afirma Merluzzi, o País vivencia quadro econômico desfavorável para o consumo de automóveis.
“As condições econômicas que fizeram o mercado interno saltar de 1,4 milhão de veículos em 2003 para 3,8 milhões em 2012 não mais estão presentes e não há chances de serem repetidas nesta década”, interpreta o consultor diante de um gráfico que compara as curvas evolutivas de produção, PIB, inflação, Selic, taxa de desemprego e dólar nas últimas três décadas.
Não que o Brasil não sairá dos pouco mais de 2,2 milhões de automóveis, comerciais leves e pesados vendidos em 2021 e que representaram meros 3% de crescimento sobre a fraquíssima base de 2020, já 26% menor do que a de 2019. Mantido o atual cenário econômico, o mais provável é que a evolução se dê timidamente nos próximos três anos, calcula Merluzzi. Uma evolução maior e, sobretudo, sustentável dependeria de uma grande reviravolta em vários aspectos.
“E quando acabar a demanda reprimida dos últimos dois anos? O mercado automobilístico cresce em função da combinação de vários fatores e por alguns anos seguidos. Dentre outros, previsibilidade, nível de emprego, inflação baixa, disponibilidade de financiamento, taxas de juros atrativas e programas governamentais abrangentes que incentivem as montadoras a produzir e investir”.
No entender de Merluzzi, esses aspectos inexistem atualmente no Brasil ou estão desalinhados. Em sua visão, as projeções também não são animadoras. O mercado ainda tem que conviver com a forte elevação dos preços dos carros novos, queda do poder de compra e mudança do comportamento do consumidor, cada vez mais atento à mobilidade inteligente e menos apegado à ideia de ter um carro própria na garagem.
Se de um lado o cenário não é favorável, de outro – o dos fabricantes e seus revendedores – a oferta reduzida de veículos parece não ser um problema tão grande assim e, em alguns casos, seria até mesmo uma alternativa momentânea para a rentabilidade.
No entender de Merluzzi, faltam carros novos não apenas pela produção estrangulada, mas também porque, para algumas marcas, aumentar o ritmo da linha de montagem para atender a demanda reprimida poderia ser um mau negócio. “Hoje se vende veículos com margens cheias e até ágio. A última vez que o mercado vivenciou esse quadro foi em 1986 e 1987”, enfatiza o consultor.
Mesmo que isso não seja inteiramente verdade no caso de algumas empresas, pondera Merluzzi, diante das muitas incertezas de como caminharão as vendas nos próximos meses sob o nevoeiro da pandemia e também mais adiante, assumir um aumento vigoroso da produção implica compromissos de mais longo prazo com a matriz e com a própria cadeia de suprimentos, que igualmente precisaria acreditar nas potencialidades do mercado.
“Os próximos três anos poderão redefinir o futuro de algumas marcas no Brasil”, arrisca o Merluzzi, que ainda vê a produção e o mercado nacionais muito distantes do processo de eletrificação que ganha corpo nos principais países produtores e consumidores. “Mas o carro elétrico será inevitável no futuro”, diz, com o cuidado de acrescer muitas dúvidas sobre prazos e se os modelos movidos a bateria serão a melhor saída para a descarbonização aqui.
Merluzzi defende com vigor o desenvolvimento de tecnologias que contemplem, por exemplo, o etanol como uma das premissas. A produção local significativa de carros puramente elétricos a bateria esbarraria, dentro outros fatores, em um mercado interno com escala que sustente os investimentos das montadoras em produtos e no novo modelo de negócios, além, claro, do custo das tecnologias.
“Não teremos produção de baterias aqui e os preços internacionais delas não vão cair. Ao contrário, tendem a subir devido à demanda e necessidade de evolução. As baterias em estado sólido utilizam o dobro de litio das atuais, por exemplo. E o litio subiu 380% em seis meses, o cobalto 120%”, exemplifica.
Por conta disso, Merluzzi se preocupa também com encaminhamento do Projeto de Lei nº 304/2017 no Congresso Nacional e que proíbe a venda de automóveis movidos a combustíveis fósseis no Brasil a partir de 2030 e a circulação desses veículos a partir de 2040. “Aprovar algo assim é extremamente perigoso. A escala local não sustentará operações de marcas com baixo volume, restando a elas a importação e o risco de abandonarem o País.”
Merluzzi lembra também dos incentivos que ainda são concedidos aos elétricos nos maiores mercados mundiais e da necessidade de constituição de uma rede pública de recarga, investimentos vultosos para um país com sérias restrições orçamentárias.
“O texto demonstra desconhecimento sobre os setores industrial, automobilístico e econômico e pode causar um impacto negativo irreversível para o País”, enfatiza o consultor, que lembra que o projeto não sinaliza nem mesmo a destinação da frota circulante de veículos a combustão, um patrimônio privado. (AutoIndústria/George Guimarães)