Fusca com preço de Ferrari

O Estado de S. Paulo

 

Seria possível, no universo humano, que se alimenta de símbolos, transformar, com um passe de mágica, um Fusca – ícone do carro popular – numa bela Ferrari – símbolo da opulência, sucesso e velocidade? Sim, é possível, como vimos acontecer, já neste século 21, num processo de busca e apreensão, e a fada madrinha dessa transformação foi uma nossa velha conhecida: a correção de dívidas.

 

Vejamos como: o cidadão comprou um Fusca usado, financiou a operação e alienou fiduciariamente esse item popular a um banco. Deixou, contudo, de pagar as parcelas, e foi determinada a busca e apreensão do bem dado em garantia; o oficial de justiça procurou, mas não encontrou o Fusca.

 

O tempo passou, o processo dormiu em arquivos, até que um dia a instituição apresentou nos autos a conta do débito, pedindo que – se não mais possuísse consigo o bem físico – o devedor fosse intimado a pagar, sob pena de prisão, o valor de mais de R$ 1 milhão. Ou seja: quem financiou um Fusca foi chamado a devolver uma Ferrari, o que faz saltar imediatamente aos olhos o absurdo da situação.

 

De fato, não é razoável que a atualização infle o débito a ponto de tornálo irreal e impagável. Fantástico é como as taxas elevaram o débito, sem possibilidade para o cliente se defender do abuso de poder de mercado.

 

A fixação da taxa de juros deveria contemplar o risco da operação e proporcionar rentabilidade razoável ao mutuante. É legítimo esperar que o proprietário do Fusca devolva à instituição financeira algo mais que o mero valor desse bem, em troca do risco que o mutuante correu.

 

Não é preciso ser versado em finanças, porém, para se dar conta de que o financiamento de um Fusca não pode ser recompensado com o pagamento ao equivalente a uma Ferrari.

 

O problema também ocorre sistematicamente com as dívidas de pessoas físicas e jurídicas com o Fisco, cujo montante atual equivale à metade do total de crédito do sistema financeiro nacional. Sua quase totalidade é composta da correção monetária e das multas sobre os valores originais, que fazem com que pequenos montantes se transformem em dívidas impagáveis.

 

Eis outra metamorfose de Fuscas em Ferraris, perpetrada pelo Estado. Acontece com dezenas de milhares de dívidas fiscais, engordadas por multas e pela aplicação da Selic. Note-se que, desde o Plano Real, a inflação medida pelo IPCA foi de 585,4% e a correção pela Selic de 5.985,7%.

 

Com tal “feitiço”, o Estado foca primordialmente em extrair, no curto prazo, o máximo de recursos, mesmo que em prejuízo da sobrevivência econômica dos devedores. Matase, por assim dizer, a galinha dos ovos de ouro, e restringe-se a plena cidadania econômica e a capacidade operacional das empresas.

 

A moeda nacional é o real, não é o real corrigido pela Selic. Os cidadãos e as empresas fazem cálculos financeiros em reais, compram, vendem e recebem em reais. Não ganham, faturam ou lucram em Selic. A dinâmica descontrolada das dívidas com o Fisco está se transformando numa tragédia,

 

Não é razoável que a atualização infle o débito a ponto de torná-lo irreal e impagável contribuindo para a manutenção de altos índices de desemprego e para o esvaziamento do projeto de um Brasil moderno. É o Estado, que deveria promover o crescimento econômico, entravando-o.

 

É possível corrigir essa distorção eliminando a correção e as multas dos débitos da dívida ativa da União, recalculando-se retroativamente seu valor. Embora essa operação gere perspectivas de entradas menores no curto prazo, tornaria as dívidas efetivamente solvíveis e possibilitaria cobrar mais tributos de mais contribuintes por mais tempo. Tal política, cuja implantação e efeitos são viáveis e rápidos, também daria uma folga de caixa a muitas empresas e cidadãos e proporcionaria impulso à atividade econômica.

 

O Brasil está avançando na velocidade de um Fusca obsoleto, quando poderia e deveria estar correndo como uma Ferrari nova: é preciso acertar o feitiço e voltar a percorrer a estrada do desenvolvimento. (O Estado de S. Paulo/Renata Manzini e Roberto Luis Troster, são juiz de Direito e Economista)