Gazeta do Povo
Entre o fim de 2020 e o início de 2021, três montadoras fizeram anúncios que impactaram negativamente a indústria automobilística no Brasil: o fechamento da fábrica Mercedes-Benz, a suspensão por tempo indeterminado da produção da Audi e o fim da produção de carros da Ford, que estava no país havia 103 anos.
Incertezas em relação à economia local, dificuldades impostas pelo chamado custo Brasil e problemas de rentabilidade estão entre as explicações para a saída das multinacionais. Questões específicas também pesaram: a Audi, por exemplo, reclamava a devolução de créditos tributários acumulados no âmbito do Inovar-Auto, o programa de incentivos à indústria automobilística adotado no governo Dilma Rousseff (PT).
O impacto não se restringe só às unidades da Ford (em Camaçari, na Bahia, Horizonte, no Ceará, e Taubaté, em São Paulo), da Mercedes-Benz (em Iracemapólis, São Paulo), e da Audi (em São José dos Pinhais, Paraná). Deve ter impacto sobre a cadeia de fornecedores e concessionárias.
Só na Ford, a estimativa é de que sejam necessários US$ 4,1 bilhões para o pagamento de cerca de 5 mil funcionários demitidos, e indenizações a centenas de fabricantes de autopeças e revendedoras. Steve Armstrong, que comandou a Ford Brasil entre 2012 e 2016, foi chamado para fazer a reestruturação das operações da montadora norte-americana na América do Sul.
A unidade da Mercedes em Iracemápolis tinha 370 trabalhadores. A empresa, que tinha inaugurado a fábrica em 2016 após investir mais de R$ 600 milhões, creditou o encerramento da produção do SUV compacto GLA e o sedã médio Classe C à situação econômica difícil no Brasil por muitos anos e que se agravou com a pandemia.
“Isso causou uma queda significativa nas vendas de automóveis premium”, pontuou Jörg Burzer, membro do conselho da Mercedes-Benz em comunicado oficial emitido pela empresa em dezembro.
Fatores decisivos para as montadoras
Um dos fatores que pode ter contribuído para a decisão das três empresas está relacionado ao custo Brasil e às incertezas em relação à economia local.
“Se os resultados não são bons e as perspectivas não são favoráveis, é hora de repensar a estratégia”, diz Flávio Padovan, sócio da MRD Consulting e ex-CEO da Jaguar Land Rover.
No ano passado, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), a participação da Ford no total de veículos licenciados foi de 7,4%. A da Audi era de 0,4% e a da Mercedes Benz, 0,3%.
“A decisão também tem a ver com a estratégia internacional das empresas”, destaca o líder de industrial markets e setor automotivo da KPMG no Brasil, Ricardo Bacellar.
Padovan destaca que sem condições que garantam a competitividade das empresas e diante de resultados negativos, fica complicado investir na modernização das fábricas. “O Brasil tem uma grande capacidade instalada e uma grande ociosidade”, explica.
A Ford, segundo ele, optou por focar em produtos e mercados onde está ganhando dinheiro. A Audi e a Mercedes, que atuam no mercado de veículos premium, também foram afetadas pela instabilidade cambial, devido à grande importação de componentes. “Isto dificultou que elas fossem competitivas”, afirma Padovan.
A intenção de muitas montadoras era de usar o país como uma plataforma de exportação, o que não se confirmou. “O Brasil não fez investimentos na abertura dos portos, faltam condições de competitividade e há exportação de resíduos tributários”, diz Bacellar.
Segundo ele, o caminho para o Brasil passa pela massificação de políticas consistentes de exportação, ter uma boa estrutura cambial e tributária. Também é necessário rever o custo de mão de obra no país, que é elevado.
Padovan destaca que falta uma política industrial consistente para o país. As últimas medidas para o setor automotivo, como o Inovar-Auto e o Rota 2030, este ainda em vigor, tinham metas ousadas e praticamente inatingíveis, ressalta o consultor. “E, no caso do Inovar-Auto, forçava as empresas a investir no Brasil.”
Exportações em recuperação
No ano passado, foram exportados US$ 2,71 bilhões em veículos de passageiros, 29% menos do que em 2019, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex). Foi a terceira queda anual seguida.
Os números estão experimentando uma recuperação. No primeiro quadrimestre do ano, houve um crescimento de 29,5% nas exportações, atingindo US$ 1,04 bilhão. Sete em cada dez dólares em vendas para o exterior vem de três países: Argentina, Colômbia e México. Os carros são fabricados principalmente em São Paulo, Paraná e Pernambuco.
Outra trava à expansão da indústria automobilística é o baixo crescimento da economia brasileira. Nos últimos dez anos, o PIB brasileiro se expandiu a um ritmo de 0,3% ao ano, enquanto a economia mundial se expandiu em 2,7%, em média. Os números são do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostram que em 2011 foram produzidas 2,77 milhões de unidades, chegando a 3,1 milhões em 2013. No ano passado a indústria nacional produziu apenas 1,84 milhão de veículos.
Problemas de produtividade nas fábricas brasileiras são coisas do passado, aponta Bacellar. Segundo ele, há unidades de montadoras no país que, inclusive, são referência internacional. “O Brasil é atrativo e desperta interesse dos fornecedores da cadeia produtiva.”
Mudança de rumos
O líder da KPMG afirma que a indústria automotiva está em um momento de transição. Aos poucos, o modelo tradicional, caracterizado pela produção e venda de veículos, está dando lugar a um sistema por assinaturas. Pelo menos seis montadoras brasileiras já utilizam essa modalidade. “É um modelo que tende a ganhar força no Brasil, pois rompe com duas características do sistema tradicional: o ticket de entrada alto e o custo de manutenção”, diz.
O fenômeno também está atrelado a outra mudança por parte do consumidor. “Diante de uma melhora no transporte público mundial, as pessoas começam a fazer mais contas: se vale a pena comprar um carro ou alugá-lo”, diz Padovan.
Outra tendência setorial é a da eletrificação da frota. Estudos da KPMG projetam que, em 2040, três quartos da frota mundial serão movidas a energia elétrica. “É uma tendência disruptiva e irreversível, na qual o Brasil entra atrasado”, afirma o consultor.
O principal impacto será na mudança de fornecedores por parte das montadoras. “E o Brasil pode se beneficiar nesse cenário como player relevante no mercado de autopeças. Só tem de fazer a lição de casa”, diz o líder da KPMG.
Estudos de eletrificação da frota já vêm sendo desenvolvidos pela indústria nacional. A Renault, em parceria com a Weg, ABR Energias, Brafer e Sistema Fiep, desenvolveu uma iniciativa para permitir a recarga de baterias de veículos elétricos de forma 100% sustentável e limpa.
A catarinense Weg lançou, no início de maio, uma nova estação de recarga para veículos elétricos que reúne mais tecnologia, sustentabilidade, conectividade e que promete mais segurança. (Gazeta do Povo/Vandré Kramer)