O Estado de S. Paulo
A Agência Internacional de Energia (AIE) acaba de lançar um relatório de 223 páginas intitulado Net Zero by 2050 – A Roadmap for the Global Energy, com graves advertências. A mais grave delas é a de que, se é para cumprir as metas de carbono zero até 2050 – como acertado no Acordo de Paris –, até 2035 em todo o planeta deverão ser suspensos todos os investimentos destinados à produção de combustíveis fósseis: carvão mineral, gás e petróleo. Além disso, que até 2035 não sejam mais vendidos veículos de passeio com motor a combustão e que a geração de energia elétrica não produza mais emissões de carbono até 2040.
O ex-vice-presidente dos Estados Unidos e Prêmio Nobel da Paz (2007), Al Gore, fez uma segunda advertência de igual gravidade. Em evento do jornal Valor Econômico, ele avisou que até 2030 o mundo terá de enfrentar perdas de US$ 22 trilhões em cancelamentos de balanço correspondentes a investimentos em empreendimentos dependentes de energia de fontes fósseis.
Alguém pode torcer o nariz e acreditar que esses prazos não passam de referências teóricas que, como outras, não existem para ser cumpridas. Outros podem achar que essas advertências não passam de alarmismo divulgado por fundamentalistas ambientais que, afinal, contrariam direitos adquiridos, empregos estabelecidos e interesses de grandes potências. Que essas são pressões adicionais às que já estão aí não há dúvida. O fato é que elas aumentam exponencialmente e a maior parte delas está fundamentada em fatos. Governos importantes e multinacionais de envergadura já vêm trabalhando para cumprir essas metas.
À medida que a mudança da matriz energética se acentuar, cairá, também, o valor de mercado de poços de petróleo e gás, de plataformas, oleodutos, refinarias, usinas térmicas, equipamentos e veículos operados com combustíveis fósseis, ações de petroleiras.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, por exemplo, está negociando um pacote de US$ 2,3 trilhões para desenvolver não só programas de infraestrutura, mas, também, de produção de energia limpa destinada a substituir a queima de combustíveis fósseis.
Em todo o mundo, a matriz energética vai sendo alterada para que aumente substancialmente a participação de usinas eólicas e fotovoltaicas. As grandes montadoras de veículos já adotaram agendas que preveem paralisação da produção de veículos a gasolina e diesel para substituí-los por elétricos ou híbridos.
Ou seja, não são puramente pressões de ambientalistas. O mundo passa por inexorável mudança de paradigma energético cujo objetivo é reduzir drasticamente a emissão de carbono na atmosfera. Essas mudanças podem não chegar ao quociente de carbono zero em 2050, mas, apesar das resistências, a tendência é essa.
E o que Al Gore está dizendo faz muito sentido. À medida que a mudança de paradigma se acentuar, cairá, também, o valor de mercado de poços de petróleo e gás, de plataformas, oleodutos, refinarias, usinas térmicas, equipamentos e veículos operados com combustíveis fósseis, ações de petroleiras, etc. E as empresas terão de reavaliar para menos enormes patrimônios (reconhecer impairments). Ou seja, vem aí um mico jurássico que Al Gore avalia em US$ 22 trilhões, o equivalente à soma dos PIBs do Brasil e dos Estados Unidos em 2020.
Apesar dos desmandos do governo brasileiro em relação às questões ambientais, algum progresso nessa transição energética vem acontecendo. A potência instalada de energia eólica chegará a 20 GW ao fim deste ano e cresceu quase 22 vezes desde 2010. E a de energia fotovoltaica é de 8,8 GW, ou 660% mais alta em cinco anos. (Para uma ideia das dimensões, a Usina Hidrelétrica de Itaipu tem potência instalada de 14 GW.)
Mas essa substituição vem sendo feita aleatoriamente, sem uma política impregnada de sentido de urgência que a situação está exigindo.
No caso do petróleo e gás, a falta de visão foi erro incomensurável. Entre a descoberta de uma área de petróleo e sua exploração permeiam seis a oito anos. Ainda há muitas áreas do pré-sal brasileiro a colocar em leilão e uma imensa faixa litorânea no Norte e Nordeste. Mas, durante tempo demais, prevaleceram por aqui a ideologia do “petróleo é nosso”, a política de esperar que a Petrobrás adquira musculatura suficiente para operar sozinha e a ganância de garantir mais receitas fiscais.
Já estamos nos 40 minutos do segundo tempo e o grande risco é o de que enormes jazidas de petróleo e gás permaneçam enterradas para sempre no subsolo brasileiro. Nesse ritmo, o mico também será nosso. Depende de nós se esse mico será jurássico ou se proporções menores. (O Estado de S. Paulo/Celso Ming, comentarista de economia)