O Estado de S. Paulo
O anúncio de fechamento das fábricas da Ford no Brasil foi um choque e uma surpresa para quase todo mundo. Quem acompanha mais de perto esse mercado, porém, não se surpreendeu tanto assim. Os analistas dizem que a indústria automobilística vem tentando se reinventar no mundo todo, e uma das alternativas é focar nos veículos elétricos e híbridos. A corrida para chegar a produtos viáveis nos mercados globais está deixando para trás empresas e países que entraram tarde, ou ainda nem participam dessa disputa, avalia Cássio Pagliarini, da Bright Consulting.
Esse processo exige elevados investimentos e, no caso da Ford, tudo indica que a matriz não quis ter esse gasto no Brasil. O movimento anunciado ontem é algo similar ao que ocorreu recentemente com a Mercedes-Benz, que em dezembro fechou sua fábrica de automóveis em Iracemápolis (SP).
Em comunicado, a Ford afirma vai concentrar a produção da América Latina na Argentina e no Uruguai. Para Marcus Ayres, sócio-diretor da consultoria Roland Berger, duas razões teriam, na sua opinião, favorecido o país vizinho. Uma delas é que a Argentina produz a Ford Ranger, um dos carros-chefes da companhia. Além disso, a economia argentina é altamente dolarizada, o que facilitaria o repasse de aumento de custos. Hoje, 70% da produção Argentina é exportada.
No Brasil, a situação do setor automotivo já vem em ritmo lento desde a crise de 2014, e foi intensificada pela queda drástica no mercado provocada pela pandemia da covid-19. Não bastasse a situação global, o governo brasileiro não tem demonstrado interesse em definir uma política industrial que indique se o caminho aqui será o de carros elétricos, híbridos ou híbridos a etanol.
“Está faltando uma orquestração política no setor”, diz Pagliarini, que foi funcionário da Ford por 25 anos. Em sua opinião, “há um perigo muito grande” de outras montadoras seguirem a decisão da Ford. “Temos muita capacidade instalada e não cabem tantas fábricas, aqui e no mundo”, afirma.
Velocidade
“O Brasil é um país de infinitas possibilidades, mas no setor automotivo há algumas coisas que precisam se mover um pouco mais rápido para se adequar à nova realidade”, diz Ayres. Ele destaca que os três pilares da indústria automobilística são: posicionamento dos produtos, performance e progresso. “Quanto mais rápido a indústria se mover na ideia desses três pilares para se adequar à nova realidade, mais robusta ela ficará. Se ela ficar parada nessas três dimensões, daí eu não tenho dúvida alguma de que o movimento que vimos com a Ford poderemos esperar para outras montadoras.”
Para Ayres, a decisão da Ford de sair do País não foi uma novidade. Esse movimento já vinha sendo sinalizado desde 2019, com a venda da fábrica de caminhões de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. A estratégia da companhia, que culminou com a decisão de encerrar as operações no País, ocorreu porque uma série de veículos produzidos no Brasil não estavam alinhados com os objetivos globais da empresa, diz. “A Ford está se movendo para ser uma montadora de SUVS (utilitários esportivos), o segmento mais lucrativo, e de veículos elétricos.”
Já Ricardo Bacellar, sócio líder de Industrial Markets e Automotivo da KPMG no Brasil, aponta que a decisão da Ford decorre de uma série de fatores, começando pelo aumento da concorrência, que comprometeu as suas margens de rentabilidade – uma situação que a pandemia ajudou a deteriorar. A necessidade de quarentena, que no período mais rígido fechou concessionárias, obrigou as montadoras a correrem para acelerar os investimentos em digitalização, algo que não foi acompanhado pela Ford.
“Ela acabou afastando os clientes. Várias montadoras optaram pelos lançamentos rápidos em seus canais digitais. Houve uma necessidade de investir muito”, diz.
Atraídas por incentivos fiscais, inúmeras montadoras se instalaram no País de olho em um mercado de pelo menos 3 milhões de veículos por ano.
Hoje, as fábricas locais têm capacidade para produzir 5 milhões de veículos por ano. Em 2020, no entanto, foram fabricados 2 milhões e deve levar, segundo projeções, cerca de mais cinco anos para o setor voltar a patamares da pré-pandemia, de cerca de 3 milhões de unidades. Mas, segundo Cássio Pagliarini, “a Ford decidiu não esperar”. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva, Márcia De Chiara e Fernanda Guimarães)