Veículos mais poluidores e menos seguros?

O Estado de S. Paulo

 

Apesar do panorama sombrio projetado no início da pandemia, previsões de vendas de veículos novos da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) apontam para uma recuperação. Ainda assim, a representante das montadoras insiste no adiamento de requisitos legais que diminuem a emissão de poluentes, após ter obtido no Conselho Nacional do Trânsito o adiamento de prazos para várias medidas que melhoram a segurança dos veículos (Resolução Contran n.º 799, de 22/10/20).

 

As demandas da Anfavea se baseiam principalmente em previsões de vendas mais baixas por causa da pandemia. O ótimo desempenho do agronegócio e a retomada da construção civil vêm promovendo com vigor o mercado de caminhões e máquinas agrícolas, e no caso dos automóveis e ônibus a recuperação é menos pujante, mas é um fato.

 

Veículos automotores têm vida útil longa. Não é incomum ver em circulação veículos produzidos há mais de 30 anos, com emissão muito alta e condições deploráveis de segurança. Enquanto muitos importados vêm recheados de tecnologia que ajuda a prevenir acidentes e oferece maior proteção aos ocupantes, os produzidos aqui, especialmente os mais populares, sofrem de anemia tecnológica.

 

Carros

 

Acidentes de trânsito no Brasil causaram 40.721 óbitos em 2019, segundo a Líder, administradora do seguro DPVAT. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2009 a 2018 os acidentes deixaram mais de 1,6 milhão de feridos, a um custo de quase R$ 3 bilhões para o SUS. O CFM estima que a cada hora 20 pessoas dão entrada num hospital com ferimento grave em acidente de trânsito, com perdas econômicas substanciais para as vítimas e sua família e custos com tratamentos, pela redução ou perda de produtividade ou incapacitação permanente.

 

Apesar dessa triste realidade, a Anfavea pressionou desde o início do ano e conseguiu o adiamento de medidas essenciais para a segurança de todos os veículos comercializados, obrigatórias há anos em muitos países. Algumas simples e de baixo custo, como o aviso para afivelar o cinto de segurança. Outras mais sofisticadas, como o controle eletrônico de estabilidade e tração que segura o veículo em curvas mais fechadas e pistas escorregadias. Simples ou avançadas, todas visam a salvar vidas.

 

Não satisfeitas com a economia já conquistada, as montadoras querem também atrasar medidas de controle da poluição do ar. Esquecem que as medições da qualidade do ar indicam que os valores observados são ainda insuficientes para que a população das principais cidades do País respire um ar limpo, em conformidade com as diretivas da Organização Mundial da Saúde (OMS).

 

As áreas urbanas do País são habitadas por cerca de 85% da população, e nelas os veículos são a principal fonte poluidora. Centenas de estudos confirmam que a poluição do ar causa diversas doenças e, segundo a OMS, contribui para mais de 4 milhões de mortes por ano mundialmente. É um fenômeno que nem sempre recebe atenção, porque mata de forma silenciosa. Em tempos de covid-19, a poluição do ar se torna um cúmplice perigoso do vírus, como já observado em diversos estudos.

 

Cuidar mais e melhor da segurança veicular e do ar que respiramos é um desafio que precisa ser enfrentado com urgência e seriedade, pois o Brasil ainda está na idade da pedra quanto aos cuidados com veículos em circulação. Esta realidade não deve servir de justificativa para negligenciar um controle mais avançado dos veículos novos, medida adotada em 2018 pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente, que estabeleceu novas etapas para a redução de emissões a partir de 2022, com impactos positivos até 2031.

 

Atrasar medidas já definidas e de grande interesse social e ambiental por causa de justificativas questionáveis significa fechar os olhos para o presente e pendurar a conta no futuro, o que deve ser repudiado veementemente pelas autoridades responsáveis. (O Estado de S. Paulo/Eduardo Jorge, Fábio Feldmann, Maria Stella Gregori e Maurício Brusadim)