Montadoras terão longa estrada até a recuperação, diz presidente da Fiat

Portal Veja

 

A eclosão da pandemia mundial causada pelo novo coronavírus desatou uma crise sistêmica global, com repercussão sobre todos os aspectos de nossa vida. Além do forte impacto imediato e visível na saúde pública e na atividade econômica, observam-se desdobramentos nas finanças, no mundo do trabalho, nos padrões de consumo, nos relacionamentos, no conceito de individualidade, nas aspirações, enfim, em tudo o que define o que é ser humano. É cedo ainda para sabermos como a sociedade e os indivíduos se transformarão ao final desse processo, mas é certo que, da mesma forma como ocorreu após as duas grandes guerras mundiais e em outras crises vencidas pela humanidade, novos paradigmas serão consolidados depois da pandemia, estabelecendo o que já se convencionou chamar de o “novo normal”.

 

Um dos setores fortemente atingidos pela crise foi o automotivo. Como a China e países europeus, o Brasil suspendeu a produção de veículos na segunda quinzena de março e permaneceu com as atividades interrompidas em abril e parte de maio. A medida foi adotada com o intuito de preservar a saúde dos trabalhadores e em articulação com o esforço de reduzir a circulação do vírus, contribuindo para a estratégia de isolamento social. O resultado foi algo sem precedente para o setor: foram produzidos apenas 1 847 automóveis no país em abril, volume fabricado no mesmo nível de 1957 – um recuo de seis décadas. A venda de veículos, efetivada essencialmente por meio de canais digitais, despencou 76% na comparação com igual mês de 2019. A recuperação do setor será um longo processo. A indústria pode encerrar 2020 com vendas 40% abaixo das registradas no ano passado, o que interrompe dramaticamente o processo de recuperação que se ensaiava desde 2017. Vale lembrar que o recorde da indústria automobilística brasileira foi alcançado em 2012, com mais de 3,6 milhões de automóveis e comerciais leves vendidos. No ano seguinte, porém, a comercialização entrou em declínio, até chegar a 1,98 milhão em 2016, para, então, iniciar uma tímida recuperação.

 

Tentamos, neste momento, antever como será o futuro, mas sem tirar os olhos da estrada tortuosa que teremos de percorrer até lá. Se a dimensão de saúde da crise pôs todos nós diante da necessidade de preservar vidas, a dimensão econômica da pandemia expôs os agentes a dois problemas imediatos: a preservação de empregos e a preservação do negócio. No tocante aos trabalhadores, o governo agiu de modo tempestivo e adequado ao editar a MP 936, que flexibilizou o trabalho, preservando renda e empregos. Reter essa mão de obra é estratégico para a indústria, seja pela importância do nível de emprego para sustentar a demanda e a economia, seja porque se investem em média nove meses na capacitação do profissional, que, assim preparado, passa a ser um diferencial competitivo para a companhia. Entretanto, continuamos diante do desafio da preservação do negócio. Sem produção em abril e com baixo nível de atividade nas próximas semanas, a situação do caixa das empresas tornou-se crítica. O setor automotivo reúne cerca de 7 000 companhias, entre montadoras, fornecedores e concessionários, de todas as marcas, que empregam mais de 1,2 milhão e respondem por 18% do PIB industrial. São empresas de todos os portes, que buscam linhas de financiamento para responder às suas obrigações correntes e não as encontram em volume necessário nem a custos competitivos. A escassez de crédito pode sufocar muitas delas, que nem sequer podem buscar alternativas no mercado internacional, porque a crise de liquidez é global. O tema precisa ser equacionado urgentemente, pois é a estrada que nos permitirá cruzar o presente em direção ao novo normal. Ou melhor: novos normais.

 

Utilizo a expressão assim no plural porque voltaremos ao normal em etapas, com dois momentos distinguíveis. O primeiro deles é a saída do isolamento social, quando retomaremos parcialmente nossas atividades; o segundo será quando for possível produzir uma vacina contra o vírus. Nesse cenário, estudamos na empresa os novos prováveis contornos dos indivíduos e da sociedade pós-pandemia, contando com análises antropológicas e sociológicas. A crise tem começo, meio e fim. Isto é, teve uma fase de crescimento exponencial, tem um platô de contaminação e terá o período de normalização. Subdividimos em cinco etapas, para melhor compreensão das emoções dominantes: incubação (excitação e banalização), pânico (reflexos de fuga), isolamento (distanciamento e ansiedade), rethinking (incerteza e esperança) e novo normal (hesitação e facilitação). A soma de tudo exerce enorme pressão sobre as pessoas e a sociedade, afetando os pilares básicos do equilíbrio global e provocando disrupções. Pilares como economia e distribuição de renda, saúde pública, educação, infraestrutura, normas regulatórias, geopolítica, tecnologia e mídia estão em flagrante transformação. As resultantes serão paradoxais. De um lado, a renda e o poder aquisitivo agregado retrocederão o equivalente a uma década. Pelo outro, a digitalização já avançou uma década. No curtíssimo prazo, porém, teremos uma transição de sinais contraditórios. Após uma crise que envolve ansiedade e privação de mobilidade e de prazeres, a tendência é um período hedonista. Provavelmente haverá uma exacerbação do consumo de itens de luxo, como forma de compensação pela privação e de celebração pela superação. Mas, ao lado dessa motivação, existe grande parcela de consumidores que perdeu renda e inclina-se a buscar produto de menor preço. Assim, no segmento automotivo observamos uma concentração de demanda nas pontas: nos segmentos top e de entrada. O consumidor tenderá a privilegiar o automóvel, tanto como meio de transporte em viagens quanto como solução para evitar a contaminação no transporte público.

 

A grande tendência duradoura do pós-pandemia, entretanto, será o fortalecimento da conexão social no mundo virtual, com o aumento de trabalho remoto, relacionamento, informação e compra de serviços on-line. O que representará um desafio para as empresas, pois a aceleração do comportamento digital do indivíduo muda o ritmo da sociedade, alterando a própria percepção e utilização do tempo e do espaço. E sabemos quanta energia essas duas variáveis envolvem quando se tornam relativas. (Portal Veja/Antonio Filosa)