O Estado de S. Paulo
Pelos resultados da primeira quinzena, as vendas de veículos novos neste mês devem ficar próximos às de abril. Com 55,7 mil unidades comercializadas, foi o menor volume mensal para o setor em 21 anos. As fabricantes já reclamavam da falta de liquidez desde o início da crise, em meados de março, e agora a preocupação aumenta diante da falta de perspectivas de um acordo com o governo federal para a liberação de uma linha de crédito com juros mais acessíveis em relação aos cobrados no mercado.
As montadoras afirmam necessitar de cerca de R$ 40 bilhões para manter operações nos próximos três meses. O dinheiro seria usado para pagar fornecedores e dar suporte às concessionárias, permitindo assim a atuação desses segmentos até o arrefecimento da pandemia do coronavírus.
A proposta das empresas é que o governo, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) convença os bancos privados a liberarem crédito com juros e prazos acessíveis para o momento de crise. Em troca, oferecem como parte das garantias os R$ 25 bilhões que têm em crédito a receber do governo federal e dos Estados por impostos dos quais são isentas por uma “aberração do sistema jurídico do País”, afirma o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes.
Moraes ressalta que a falta de liquidez é problema de todos os setores, não só do automotivo. Ele defende uma solução sistêmica, que seria o governo assumir o risco da garantia para todos. “Nem todo mundo vai dar calote e, mesmo que alguns deem, a conta será menor do que, por falta de condições, as empresas deixarem de recolher impostos, demitirem funcionários (que terão de receber o salário desemprego), além do aumento da informalidade”, diz.
“O governo tem de tomar uma decisão”, diz o executivo, ressaltando que empresas de todos os portes, pequenas, médias e grandes estão com dificuldades de obter crédito. O R$ 1,2 trilhão liberado pelo Banco Central não está chegando à ponta por causa da preocupação dos bancos com o calote, afirma Moraes. Quando liberam, é com juro “absurdo”, que chega a 20% ao ano, e curto prazo de carência.
“Quando o dinheiro não gira, há um desastre na cadeia toda, formando uma espiral perversa”, afirma Ricardo Bacellar, responsável no Brasil pela área automotiva da consultoria KPMG. Ele ressalta que, além dos problemas gerados pela pandemia da covid-19, há o efeito adicional do câmbio. “A maioria dos fabricantes de autopeças e das concessionárias é de pequeno e médio porte, muitas delas pertencentes a grupos familiares que normalmente não tem hedge (proteção contra oscilações de preços) e correm mais risco de fecharem ou serem adquiridas por grupos maiores.”
Endividamento
O setor automotivo já acumula, até março, dívidas de curto, médio e longo prazos com o sistema financeiro de R$ 37 bilhões, de acordo com dados do BC. Desse valor, R$ 7 bilhões foram contratados no primeiro trimestre. Segundo Moraes, o montante equivale ao giro normal de uma indústria que, antes da crise, faturava cerca de R$ 240 bilhões ao ano.
Antes, as empresas recorriam às matrizes para empréstimos intercompanhias, normalmente com juros inferiores aos locais. “Agora a receita caiu de forma geral, em todo o mundo, e as próprias matrizes estão com problemas de liquidez”, afirma o presidente da Anfavea, para quem essa ajuda deve diminuir ou mesmo acabar. No primeiro trimestre, as montadoras receberam US$ 2,7 bilhões em empréstimos das matrizes, cerca de R$ 15 bilhões pelo dólar atual.
Já em investimentos diretos, valores que vêm de fora como participação no capital, entram de janeiro a março US$ 223 milhões (R$ 1,2 bilhão) para o setor automotivo. Na crise de 2016, o valor médio por trimestre foi de US$ 1,6 bilhão (R$ 9 bilhões).
Letícia Costa, sócia da Prada Assessoria, afirma que, diferente de outras crises, “agora o dinheiro está faltando aqui e lá fora”. Sem financiamento para capital de giro, a maioria das montadoras já suspendeu investimentos, principalmente aqueles que seriam feitos para produtos que chegariam ao mercado daqui a dois anos.
Para ela, se esse congelamento de novos projetos acompanhar o que está ocorrendo no resto do mundo, não será tão problemático. “Mas, se essa contenção for maior e em prazo mais longo, corremos o risco de ficar defasados”. Em conferência online promovida pela agência Automotive Business, Letícia ressalta que a situação do Brasil se complicada ainda mais perante investidores externos em razão da crise política, o que pode atrasar a recuperação econômica.
“Hoje o Brasil é visto como grau de risco bastante elevado por causa da crise política quase contínua que temos”, diz ela. “Em outros países as pessoas ficam em quarentena sem fazer nada; aqui a gente fica em quarentena esperando ver qual vai ser o susto do dia”. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)