O Estado de S. Paulo/The New York Times
Era uma vez uma empresa que criou um serviço de transporte particular mais barato que o táxi, comandado por um aplicativo de celular, em qualquer lugar do mundo. Essa história, porém, está longe de ser um conto de fadas: tem cenas de violência, disputa por poder, truculência, sexo, assédio e muito, muito dinheiro envolvido. Em A Guerra pela Uber, recém-lançado no País pela Intrínseca, o jornalista americano Mike Isaac conta a ascensão e os tropeços da startup que já fez muita gente não querer ter mais um carro na garagem, mas ainda não consegue dar lucro.
Repórter do New York Times, Isaac acompanhou de perto os capítulos dessa história, que se foca no período em que Travis Kalanick, polêmico cofundador do Uber, ainda mandava na empresa. “Decidi escrever o livro quando percebi que havia drama demais nesses personagens, cenas que não cabiam nas reportagens do dia a dia”, diz ele ao Estado. Ao longo de 400 páginas, porém, o livro traz não só os bastidores da criação do Uber, como também traça uma parábola sobre o universo das startups ao longo da última década (leia texto abaixo).
Na entrevista a seguir, Isaac fala sobre diversos aspectos do Uber – das más atitudes de Kalanick às super rodadas de investimentos recebidas pela startup, passando pelo machismo no Vale do Silício e o futuro da região. O Brasil, um dos principais mercados da empresa, não fica de fora: para o escritor, a crise econômica deu à empresa um cenário perfeito para se expandir por aqui. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O sr. vive em São Francisco há mais de uma década. Como era andar pela cidade antes do Uber?
Em 2010, eu estava começando a cobrir tecnologia. Naquela época, eu precisava sair com 45 minutos de antecedência para qualquer reunião, porque nunca tinha certeza se um táxi iria aparecer. Era um serviço atrapalhado, difícil. A infraestrutura de transporte público na região de São Francisco não é muito boa, comparando com outras cidades americanas, como Nova York e Chicago. É por isso que o Uber deu certo aqui.
Aqui no Brasil, a startup só ganhou fôlego quando lançou o UberX, que tem corridas mais baratas. Mas não foi assim em São Francisco, segundo o livro.
São Francisco é uma cidade muito rica. Tem muita gente da indústria de tecnologia, de fundos de capital de risco, então o nível de renda é maior. O UberX foi a grande inovação, ao colocar qualquer pessoa para dirigir. Foi o que mudou a empresa para sempre, mas aqui em São Francisco a coisa funcionava bem antes.
O Brasil é um dos maiores mercados do Uber e aparece bastante no livro. Por que a empresa deu certo aqui, na sua opinião?
O Brasil é um dos maiores mercados do Uber e cresceu muito rápido. Mas o que mais me impressiona é que ele ainda tem muito espaço para crescer aí e na América do Sul, como um todo. Nos EUA e na Europa, muita gente já usa o serviço, então não há uma expansão clara. E isso tem muito a ver com o momento que o Uber chegou no Brasil, em meio a uma crise econômica. Os EUA viveram algo parecido na crise de 2008, vários amigos perderam emprego mesmo tendo experiência e bons diplomas. A diferença é que na época o Uber não existia. Quando o Brasil entrou em crise, o Uber também entrou no Brasil. Havia falta de bons empregos, mas havia uma empresa dizendo que tinha uma oportunidade de fazer as pessoas ganharem algum dinheiro. Por outro lado, o serviço que superava a mobilidade complicada das grandes cidades e a política de descontos em viagens fizeram a empresa cair no gosto do público. O Brasil tinha um cenário perfeito para o Uber. Hoje, porém, há uma boa competição: a 99 foi comprada pela chinesa Didi, que é uma empresa que queima bastante dinheiro para conquistar mercado. A briga é boa.
Ao ler o livro, a impressão que se tem é que todos no Uber eram babacas. É preciso ser babaca para se criar uma empresa? Ou era preciso ser babaca para se criar uma empresa como o Uber?
É uma dúvida que eu tive enquanto escrevia o livro. Creio que há pessoas que tentam fazer as coisas certas, criar empresas éticas. Mas o que o Uber tentou fazer era diferente. O negócio de transportes é bastante agressivo, com sindicatos e taxistas organizados há décadas. Eles não iam simplesmente ceder espaço a quem estava entrando na arena. Travis Kalanick acreditavam ter criado algo incrível e sabiam que não podiam só pedir permissão para entrar, eles precisavam tomar seu espaço à força. Acredito que não dá para não ser babaca se você quiser criar uma empresa como o Uber.
Em 2017, o Uber viveu uma série de escândalos que levaram à saída de Travis Kalanick. Ele brigou com motoristas, permitiu espionagem contra adversários, foi conivente com casos de assédio moral e sexual… na sua opinião, qual foi o maior erro da empresa na época?
Para Travis, pessoalmente, foi o vídeo em que ele discute com um motorista do Uber, enquanto faz uma viagem. Aquele vídeo fez muita gente pensar que o Uber não ligava para os motoristas. Para a empresa, porém, foi algo que até hoje está na cabeça das pessoas. Em 2017, Trump baniu a entrada de pessoas de sete países nos EUA. Muita gente foi protestar no aeroporto de Nova York e o Uber chegou a postar no Twitter dizendo que não ia praticar preço dinâmico. O problema é que eles estavam fazendo preço dinâmico durante uma boa parte desses protestos, o que deu a impressão em muita gente que queriam lucrar em meio à confusão. Era uma época tensa, os americanos estavam bravos com Trump, com a tecnologia, com tudo, e o Uber acabou virando um símbolo do que havia de errado. Depois dos escândalos do Uber, o Facebook acabou virando essa grande “empresa malvada”, que representa o que há de ruim. Acredito que essa imagem vai permanecer com o Facebook por um tempo.
O livro também mostra que o Uber era uma empresa machista, com casos de assédio e visitas constantes a clubes de strip. Essa é uma tendência corrente no Vale do Silício?
Acredito que as mulheres são muito maltratadas no Vale. Elas ganham menos, não são contratadas para postos de gerência ou liderança, é algo sintomático na indústria de tecnologia. Mas o Uber era fora da curva, tinha uma cultura baseada no machismo. A preocupação de Kalanick era com os resultados, o que é um grande problema. Eles nunca tentaram resolver isso até a época que Travis deixou a empresa. Acredito que o ocorreu ali foi um ponto de inflexão na indústria. Foi na mesma época do escândalo de Harvey Weinstein e do movimento #MeToo, então ajudou a mudar como as empresas tratam as mulheres. Mas não consigo ter certeza do quanto mudou. Infelizmente, acredito que seja um esforço de longo prazo.
O Uber foi pioneiro ao levantar sucessivas rodadas de financiamento bilionárias, algo que também foi feito pelo WeWork e virou prática corrente do SoftBank. Hoje, esses três nomes surgem quando se discute se há uma nova bolha no mercado de tecnologia. Como o sr. vê o tema?
Sempre houve muito dinheiro no Vale, mas o SoftBank começou a financiar empresas de uma forma que muita gente acredita ser irracional. Ouço muito que há startups que deveriam ter morrido, mas não fizeram isso porque tinham muito dinheiro nas mãos. Há uma bolha de investimentos em startups. O WeWork e o Uber foram os dois primeiros ‘ploc’ dessa bolha, o que fez muita gente rever seus números. Masayoshi Son, presidente do SoftBank, chegou a pedir desculpas publicamente. Ainda há muito dinheiro no mercado, porém. A parte interessante é que o SoftBank teve problemas para levantar um segundo fundo de US$ 100 bilhões, por conta do retrospecto do primeiro. Creio que o mercado de capital de risco hoje não está refletindo a realidade e haverá correções em todo lugar – inclusive no Brasil.
O sr. cobriu o Uber ativamente por anos. Por que escrever um livro sobre a empresa?
Para mim era só mais uma cobertura. Até que eu virei um pivô no drama entre Travis Kalanick e um investidor. Ali, percebi que havia um enorme drama na história da empresa, com personagens muito bons. Havia histórias, cenas e emoções que não cabiam nas reportagens do dia a dia, não havia espaço, ali é difícil sair de uma visão unidimensional. Eu precisava contar certas coisas com a dinâmica de um livro. Foi algo com o que eu sempre flertei, mas só decidi escrever depois que Travis Kalanick saiu da empresa. Aí havia uma história para contar. Fiquei feliz, inclusive, de poder revisitar certos episódios com mais calma.
A imprensa é um personagem importante do livro. Por que mostrar isso?
A imprensa está num momento de holofotes, por causa do momento político. Bolsonaro e Trump estão tomando a imprensa como inimiga. Isso tem feito as pessoas pensarem mais sobre o papel da imprensa como personagem ativo no mundo. Com o Uber, a imprensa foi muito importante para mostrar como a empresa reagiu, como Travis lidava com cenários dignos de pesadelo. Foi uma das maneiras como as pessoas descobriram como a empresa funcionava de verdade.
Depois de Travis Kalanick, o Uber é hoje liderado por Dara Khosrowshahi, um executivo que entrou com a missão de limpar a imagem da empresa. Está dando certo?
Dara é o anti-Travis. Ele é um “pai” do Vale do Silício, chato, até tedioso. Mas era o profissional certo após a tempestade de escândalos com Travis. Acredito que o Uber hoje tem uma dúvida enorme: ainda podemos ser a empresa que iria mudar o mundo ou vamos ser uma empresa chata, que só existe e faz o que tem de fazer? Vamos ser a próxima Amazon ou o próximo Ebay? Uma mudará o mundo, outra está em atividade. Dara, agora, está tentando focar em fazer o Uber ser lucrativo. É seu maior problema, de longe, e eles ainda estão tentando descobrir como fazer isso.
E o Uber pode ser lucrativo?
A grande ironia sobre o Uber é que eles já mudaram o mundo, mas talvez nunca sejam um negócio viável. Tudo depende de quão grandes eles querem ser e quantos competidores ainda existem. O problema é que eles precisam descobrir em que negócios querem estar – como entrega de comida, por exemplo – e quanto dinheiro querem queimar para fazer parte do mercado.
O Uber é, de certa forma, um paradigma do que houve de interessante e de errado com as startups da última década. Como fica o Vale do Silício e o mundo da inovação após o Uber?
Vivemos hoje um período de desilusão. Ninguém acredita que o que vem do Vale é um lixo, mas também não seremos mais inocentes. Tenho uma grande dúvida sobre como se construirá uma versão mais responsável, do ponto de vista social ou de diversidade, do Vale do Silício. Sobre como as empresas serão construídas daqui a cinco ou dez anos. Não sei a resposta, mas estarei ansioso para ver. (O Estado de S. Paulo/The New York Times/Bruno Capelas)