Como a Tesla virou uma montadora de US$ 100 bilhões

O Estado de S. Paulo

 

“Fazer um carro esportivo. Usar o dinheiro das vendas para fazer um carro mais barato. Usar o dinheiro das vendas desse carro para fazer outro, ainda mais barato. Enquanto isso, criar novas opções de combustível sem emissão de poluentes”. A lista de metas acima foi escrita por Elon Musk em 2006, um ano antes dele assumir o comando da então nascente fabricante de carros elétricos Tesla. Hoje, o plano não só já é realidade como é a base da empresa, avaliada em mais de US$ 100 bilhões, superando as tradicionais GM, Ford e Volkswagen. Só a Toyota vale mais que ela entre as montadoras.

 

Desde setembro, as ações da companhia se valorizaram em 170%, encerrando o pregão da última sexta cotadas a US$ 650. A alta se deve a uma conjunção de fatores inédita na história da empresa. Primeiro, porque a Tesla demonstrou lucro de forma consistente em dois trimestres seguidos – os últimos resultados financeiros foram divulgados na quarta, 29. No mesmo relatório, a empresa afirmou que terá condições de entregar 500 mil veículos em 2020, um ponto alto para uma empresa que já teve muitos problemas para entregar suas metas de produção.

 

Além disso, está avançada a construção de sua fábrica de baterias na China – e o mercado asiático é considerado vital por analistas para o sucesso da empresa. “Se eles forem bem na China, as ações podem subir ainda mais”, diz o analista Dan Ives, da corretora Wedbush Securities. Ele prevê que os papéis podem chegar a US$ 1 mil num futuro próximo. Se isso acontecer, é possível que a Tesla ingresse no S&P 500, índice que reúne as principais empresas americanas.

 

Estrada do trovão

 

Nomeada em homenagem ao inventor sérvio Nikola Tesla, a fabricante foi criada em 2003, com a meta de oferecer carros elétricos a preços acessíveis. Era um plano de longo prazo: primeiro, a empresa se dedicou a fazer carros de luxo, como o esportivo Roadster e o Model X. Com margens de lucro mais largas, o retorno desses modelos permitiria a criação de automóveis mais baratos.

 

“A Tesla foi ousada desde o início ao apostar num esportivo. Ela mostrou que carro elétrico podia ser bonito e cheio de tecnologia”, diz Fábio Delatore, professor de Engenharia Elétrica da FEI. Todos os bólidos, além da bateria elétrica, também trazem recursos sofisticados de tecnologia – um dos principais é o Autopilot, sistema de condução semiautônoma talhado para as retas estradas dos EUA.

 

Em paralelo, a empresa desenvolveu uma tecnologia própria de produção de baterias de lítio, capazes de armazenar energia para os veículos. “O sistema das baterias e o software de gerenciamento de energia explicam a posição da Tesla no mercado hoje”, diz Michael Ramsay, analista da consultoria Gartner. De quebra, a empresa também traçou um plano para reaproveitar as baterias – depois dos carros, elas podem ser reusadas em sistemas residenciais de energia solar.

 

A teoria era mais simples que a prática. Desde seu início, a Tesla enfrentou problemas com linha de produção e falta de capital – o que fez Elon Musk suar em Wall Street para conseguir financiamento diversas vezes.

 

Não que Musk ajudasse muito: polêmico, ele por vezes falou mais do que devia em sua conta no Twitter, comprometendo a empresa. O caso mais célebre aconteceu em agosto de 2018, quando um tuíte seu foi considerado como tentativa de “influenciar o preço das ações” da Tesla pela SEC, autoridade regulatória americana. A polêmica lhe valeu o posto de presidente do conselho e uma multa de US$ 20 milhões. “Musk é uma personalidade controversa, mas agora parece que entrou nos eixos. Ele está liderando a empresa de fato e não só tuitando”, diz Ives.

 

Pista certa

 

Apesar dos bons números recentes, há quem diga que as estatísticas por trás da Tesla não justificam sua avaliação. “Há um exagero no mercado, considerando o preço da ação e o lucro que a empresa dá”, diz William Castro-Alves, estrategista-chefe da corretora Avenue. Para Ives, a explicação é simples: é preciso ver a Tesla não como uma montadora, mas como uma empresa de tecnologia, capaz de mudar o mercado. O potencial também considera que a empresa ainda está longe de ser global: hoje, vende seus carros só nos EUA, na China e em alguns países da Europa.

 

Para Ramsay, a narrativa da Tesla não é inédita. “A Amazon também demorou para dar lucro, mas quando deu, não parou mais. O que ela é? Uma varejista? Uma empresa de logística? Uma big tech? É difícil dizer. A Tesla é assim”, afirma o analista. Ele vê na companhia de Elon Musk um caracter importante: a visão. “Outras montadoras têm carros elétricos, mas precisam dividir suas atenções entre o futuro e o legado do motor à combustão. A Tesla só olha para a frente.”

 

Há competidores no retrovisor: a GM anunciou esta semana que vai investir US$ 2,2 bilhões para transformar uma de suas fábricas em Detroit em linha de produção exclusiva para o sedã elétrico Cruise. “Além disso, Toyota, Honda, Ford e as alemãs têm apresentado esforços interessantes no setor. O mercado talvez esteja subestimando as rivais”, afirma Castro-Alves.

 

Até mesmo quem aposta que no sucesso da Tesla tem dúvidas sobre os próximos passos da empresa – no caso, o Model Y, sedã familiar que deve chegar ao mercado no meio do ano. “O Model Y é um grande vestibular para a Tesla. Se eles não se atrapalharem, como ocorreu com o Model 3, poderão provar que são uma empresa madura”, diz Ramsay. Do contrário, é difícil imaginar que a montadora de Musk manterá seu valor de mercado.

 

Mas o fator mais desafiador para a Tesla pode ser aquele que lhe dá vantagem hoje: a tecnologia. “Hoje, Musk tem um alvo em suas costas, porque é o líder”, diz Ives, da Wedbush. “Se eles não avançarem rápido em outras tecnologias, como carros autônomos, podem ficar para trás”. (O Estado de S. Paulo/Bruno Capelas)