O Estado de S. Paulo
Circulando pelas ruas de Beirute, em meio ao trânsito caótico e à chuva insistente que caiu sobre a cidade ao longo da semana, foi possível perceber pequenas aglomerações de pessoas em volta de caixas eletrônicos de bancos. É o sinal de uma crise financeira que já causou violência e protestos, levando o governo a construir muros e ampliar a vigilância ao redor de edifícios oficiais, como o do Parlamento.
Foi nesse momento de “tempestade perfeita” para a economia do país que Carlos Ghosn – o ex-presidente da aliança Renault-Nissan – chegou ao Líbano após fugir do Japão, onde é considerado foragido da Justiça. Os cidadãos libaneses enfrentam controle de capital que impede saques no banco. É o tipo de crise que põe uma economia em xeque – e faz lembrar os problemas de liquidez enfrentados pela Grécia em 2015.
Não é para menos que Ghosn, com sua fama de bom administrador, está sendo visto por alguns políticos libaneses como uma espécie de tábua de salvação para a crise administrativa do país. Desde que desembarcou em Beirute no dia 30 de dezembro, fala-se na TV libanesa da possibilidade de o ex-titã da indústria automotiva ajudar a “dar um jeito” no país.
O recém-formado gabinete de governo não é considerado estável. Hassan Diab assumiu o cargo de primeiro-ministro em 19 de dezembro, depois de seu antecessor ter ficado menos de dez meses no posto. O governo do presidente Michel Aoun enfrenta acusações de corrupção.
Na quinta-feira, pelo Twitter, o líder do partido libanês PSP, Walid Jumblatt, sugeriu que Ghosn seja nomeado ministro de Energia. “Eu proponho sua nomeação para substituir a atual gangue que causou um déficit massivo e rejeita qualquer ideia de reforma. Carlos Ghosn construiu um império. E nós bem que poderíamos nos beneficiar disso.”
Sem liquidez
O problema sentido no dia a dia da população reflete uma economia que, desde o fim da guerra civil, entre 1975 e 1990, está baseada em empréstimos internacionais. Para atrair moeda forte, o governo libanês prometeu juros altos nos depósitos em dólar. Na hora de pagá-los, vem tomando emprestado dos cidadãos. Diretamente de suas contas.
Oficialmente, o governo ainda mantém o câmbio estável em 1,5 mil libras libanesas para cada dólar. Esse é o valor pago em hotéis e aeroportos, por exemplo. Nas casas de câmbio, com a população atrás de dólar para se proteger da desvalorização extraoficial da moeda libanesa, a cotação chega a 2,4 mil libras por dólar – diferença de 60%.
Mesmo quem está disposto a abrir mão de muita moeda local para conseguir alguns dólares, a situação não está fácil. O Estado foi a algumas casas de câmbio. A maioria apenas troca dólares por moeda local, mas não faz o contrário. Até hoje, a economia do Líbano funciona em um sistema de câmbio híbrido, em que o dólar é altamente aceito no dia a dia – por isso, as pessoas faziam seus depósitos nos bancos na moeda americana.
Restrições e protestos
Os enormes protestos que tomaram conta das ruas libanesas, em setembro e outubro de 2019, estão relacionados às restrições ao capital, que hoje permitem que cada pessoa saque pouco mais de US$ 100 por semana. Entre a população de mais alta renda, cada retirada em dólar é motivo de comemoração. “Hoje, por sorte, consegui sacar US$ 500 das minhas contas”, disse um morador do bairro de Ashrafieh, em Beirute.
“Em algum momento, essa injeção de capital (estrangeiro) tinha de acabar – e esse ponto veio no fim de 2019, depois de uma série de choques negativos”, explicou o economista libanês Ishac Diwan, em artigo publicado no site Project Sindicate, especializado em análises político-econômicas.
Um dos principais especialistas no Oriente Médio, Diwan é professor da École Normale Supérieure, de Paris. Segundo ele, quase sem indústrias e com importações anuais equivalentes a 400% do PIB, o Líbano vive hoje o que parece “a construção de uma grande depressão”. O país é uma das economias mais frágeis do Oriente Médio. Tem 6 milhões de habitantes, incluindo 1 milhão de refugiados sírios.
A questão econômica se soma a problemas que foram ignorados durante muito tempo, principalmente na infraestrutura. Nos seis dias que a reportagem do Estado permaneceu no Líbano foi comum a cidade sofrer quatro ou cinco apagões por dia. Logo em seguida, pelo menos nos bairros de maior poder aquisitivo, um sistema de geradores costuma restabelecer o fornecimento.
Essa “garantia” dos geradores, no entanto, não sai barato. Quem pode pagar duas contas de luz – a do sistema que deveria dar conta do consumo e a dos geradores. Quem não pode, fica no escuro. Mesmo em bairros chiques, como em Ashrafieh, onde agora reside Ghosn, é possível ver “gatos” fora dos edifícios. São as ligações improvisadas feitas para fazer a energia dos geradores chegar até as casas.
A tensão com a erupção de eventuais protestos é constante. Ontem, um grupo de pessoas invadiu o edifício da companhia de eletricidade na cidade história de Balbeque, em protesto contra o racionamento de energia. Na área mais nobre de Beirute, onde ficam Parlamento, sedes de bancos e lojas de grifes de luxo, a tensão é palpável. Militares armados com metralhadoras guardam pontos de checagem nos quais quem entra e sai precisa explicar o que está fazendo.
Na quarta-feira, o ex-presidente da aliança Renault-Nissan disse, na sua primeira entrevista após fugir do Japão, que pode auxiliar o governo do Líbano com sua experiência corporativa, mas sem assumir cargo oficial. “Não tenho ambição política, mas, se for convidado a aplicar minha experiência de alguma forma, estou pronto.”
“(…) Se for convidado a aplicar minha experiência de alguma forma, estou pronto”, Carlos Ghosn, ex-executivo da Renaut-Nissan. (O Estado de S. Paulo/Fernando Scheller)