Argentina tem o pior cenário desde 2002

O Estado de S. Paulo

 

Um país com uma enorme dívida de curto prazo, sem acesso ao mercado de crédito e sem reservas internacionais para pagar as contas. Essa é a Argentina que o peronista Alberto Fernández comandará a partir de hoje. Em recessão há dois anos, com uma inflação de 55% ao ano e 41% da população vivendo abaixo do nível da pobreza, a economia argentina será o maior desafio do futuro presidente.

 

Para economistas ouvidos pelo Estado, Fernández terá de encontrar soluções para um conjunto de adversidades que não se via desde o governo de Eduardo Duhalde, que presidiu a Argentina em 2002 em meio a um processo de calote e a uma desvalorização da moeda de quase 70%.

 

O cenário é pior até mesmo que o do fim de 2015, quando Mauricio Macri chegou ao poder e recebeu uma economia repleta de distorções, com preços congelados, acesso ao dólar limitado e déficit fiscal primário (sem contar os juros da dívida) de 3,8% do PIB.

 

“A economia estava desajustada em 2015, mas a principal diferença é que, naquela época, havia um consumo alto. A recessão atual é muito acentuada”, afirma a economista Marina Dal Poggetto, da consultoria argentina Eco Go.

 

O economista Lorenzo Sigaut, da Ecolatina, acrescenta que a urgência para se resolver o problema da dívida de curto prazo do país torna o início do governo de Fernández mais complexo que o de Macri.

 

Apenas nos três primeiros meses de 2020, vencem US$ 4 bilhões da dívida argentina. A partir de 2021, começam a vencer também parcelas do financiamento de US$ 57 bilhões que Macri assumiu com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, dos quais, US$ 44 bilhões foram desembolsados. O país, porém, tem apenas US$ 12 bilhões em reservas internacionais líquidas.

 

É certo que os prazos da dívida serão renegociados, dizem os economistas. Parte do mercado acredita ainda que haverá um ‘haircut’ (renegociação do valor devido). Hoje, os títulos do país são comercializados entre 40% e 60% dos seus valores de face, o que significa que os investidores não acreditam que o país pagará o preço pelo qual os papéis foram vendidos.

 

“O primeiro desafio de Fernández é reestruturar essa dívida. E a diferença (entre a situação econômica de hoje e a de 2015) é que Macri tinha credibilidade no mercado. A Argentina já não tem mais nenhuma credibilidade”, diz Andrés Borenstein, economista do BTG na Argentina.

 

Para renegociar a dívida, Fernández convocou Martín Guzmán, que, com apenas 37 anos, assumirá o Ministério da Economia.

 

O nome de Guzmán – pupilo do prêmio Nobel Joseph Stiglitz, um crítico do liberalismo – foi anunciado na sexta-feira. “Isso é inédito na Argentina. A definição da eleição se deu em agosto (nas primárias) e, a quatro dias da pose, ainda não havia um nome confirmado”, afirma Marina Dal Poggetto.

 

Para o economista Livio Ribeiro, do Ibre/FGV, a demora para se fechar o gabinete de Fernández indica que já há uma disputa de forças entre o futuro presidente e sua vice, Cristina Kirchner. “Guzmán ser o indicado (para ministro) sugere que o grupo ligado a Cristina está ganhando o embate.”

 

Antes de o martelo ser batido em torno do nome de Guzmán, o economista Guillermo Nielsen, que fez parte do governo de Néstor Kirchner, era um dos mais cotados para comandar a Economia. Visto como um pouco mais ortodoxo, Nielsen é mais próximo de Fernández do que de Cristina e participou da renegociação da dívida argentina após o calote de 2001.

 

Desde que foi eleito, Fernández indicou a seu eleitorado e ao FMI que não pretende fazer um corte nos gastos. Mas, sem um ajuste fiscal, será difícil que o mercado tope uma renegociação da dívida, alerta Melisa Sala, da consultoria LCG. “Se ele não vai cortar gastos, terá de aumentar impostos”, destaca.

 

A aposta dos economistas é que Fernández recorrerá a uma elevação dos impostos sobre exportações, principalmente agrícolas – ferramenta já adotada no governo de Cristina e a qual Macri também recorreu.

 

Além da renegociação da dívida, o controle da inflação deverá ser uma das prioridades do governo peronista. Nessa área, Fernández já mencionou a intenção de fechar um acordo entre sindicatos e empresas para segurar salários e preços. “A questão é que um acordo não é suficiente. É preciso também consistência fiscal e monetária”, acrescenta Marina Dal Poggeto.

 

Vantagens

 

Apesar de a recessão e a dívida de curto prazo tornarem o início do governo Fernández um dos piores já vividos pela a Argentina, há alguns aspectos que devem ajudá-lo a governar. Do lado fiscal, houve uma redução no déficit primário, que passou de 3,8% do PIB para 0,5% nos últimos quatro anos. O déficit comercial também diminuiu, em grande parte por causa da queda das importações decorrente da crise.

 

“Em 2020, a Argentina deve ter superávit em conta corrente. O país também está com um câmbio competitivo. Mas (para voltar a crescer) ainda é preciso cumprir uma agenda que inclui reforma trabalhista e abertura da economia”, diz Borenstein. Ele lembra que o peronismo é pragmático e poderá adotar medidas que, por enquanto, não apareceram nos discursos. (O Estado de S. Paulo/Luciana Dyniewicz)