Quatro Rodas
Quando vemos modelos compactos como Chevrolet Onix e Hyundai HB20 próximos a R$ 80 mil e outros de porte ligeiramente maior, como Honda HR-V e Toyota Corolla, sendo oferecidos sempre acima de R$ 100 mil, logo vem a reflexão inevitável: o Brasil é paraíso para a indústria automotiva em termos de lucro por unidade vendida.
Mas, acredite se quiser, nos últimos anos essa não tem sido a realidade. A forte retração econômica vivida entre 2014 e 2016, as limitações para exportação e a pressão por investimentos em novos produtos têm deixado as fabricantes com prejuízo. E bilionário.
Foi-se o tempo (especialmente o auge do governo Lula) em que as marcas de carro remetiam bilhões de dólares de lucro às matrizes no exterior, ao mesmo tempo em que recebiam investimentos muito inferiores, na casa dos milhões.
A realidade se inverteu, e de maneira drástica.
Segundo dados do Banco Central, em 2008 a indústria automotiva instalada no país enviou US$ 5,812 bilhões em lucros para o exterior, recebendo US$ 964 milhões em investimentos.
Dez anos mais tarde, as remessas ficaram em US$ 516 milhões, ao mesmo tempo em que as matrizes injetaram US$ 4,523 bilhões nas filiais brasileiras. Ou seja: saímos de um superávit de quase US$ 5 bilhões para um déficit de US$ 4 bilhões.
Para 2019 as perspectivas não estão muito melhores, visto que as remessas entre janeiro e setembro ficaram em meros US$ 313 milhões, com boas chances de que fechem o ano abaixo de US$ 500 milhões.
E olha que já saímos do fundo do poço apresentado em 2016, ano em que foram comercializados menos de 2 milhões de carros novos no país (e as remessas foram de meros US$ 111 milhões).
Ainda assim, o Brasil saiu de uma realidade de 3,6 milhões de automóveis e comerciais leves vendidos em 2013, com perspectiva de que logo chegássemos a 4 ou 5 milhões, para menos de 2,5 milhões de emplacamentos registrados em 2018.
De outro flanco, os ciclos de vida dos carros estão cada vez mais curtos, demandando atualizações rápidas de plataformas, tecnologias e métodos de produção.
Em meio a uma pressão cada vez maior por investimentos, nossa reportagem pode afirmar que há fabricantes que não vêm conseguindo ter retorno daquilo que investiram em muitos modelos. Pelo contrário.
Essa realidade vale tanto para um compacto como o Ford Ka quanto para uma picape como a VW Amarok. Há casos em que um único modelo gera mais de US$ 5.000 de prejuízo por unidade comercializada.
Para piorar, o país apresenta atualmente 40% de ociosidade de sua capacidade produtiva, estimada em 5 milhões de veículos ao ano. “Ociosidade significa custos adicionais para a indústria, (…) e isso se traduz nos balanços das empresas. Não tem como, é prejuízo mesmo”, admite Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes Automotivos).
“Se não tivéssemos as matrizes, que mandaram dinheiro para suas respectivas unidades locais, como empréstimo ou investimento de capital, teríamos grandes dificuldades. Ou seja: veio muito dinheiro lá de fora para cobrir esses grandes prejuízos da indústria local”, segue.
A ociosidade só não está maior porque, nos últimos tempos, as fabricantes têm se rendido à tentação das vendas diretas, que em 2019 já representam 45% do total de veículos leves vendidos no país. Em 2013, o percentual era de 26%; em 2016, de 33%.
Vendas diretas são aquelas feitas para empresas, clientes PcD, órgãos públicos e também para locadoras, cada vez mais presentes como clientes e também concorrentes das próprias marcas e também das concessionárias.
Segundo a Anfavea, dois em cada três carros comercializados por venda direta no Brasil são adquiridos por locadoras, o que representa 30% de todo o mercado nacional de zero-quilômetro.
A fatia só não é maior porque nossa legislação determina que um carro de locadora só pode ser revendido 12 meses depois da compra, o que limita a velocidade da renovação de suas frotas.
A ofensiva das locadoras
Ainda assim, locadoras como Localiza, Unidas e Movida possuem um poder cada vez maior de negociação para obter descontos na compra de grandes lotes de carros.
Alie isso a um cenário em que as fábricas precisam forçar o ritmo da produção para reduzir a ociosidade (e evitar medidas como lay-off, demissões ou descumprimento de contratos com fornecedores) e pronto: as oportunidades para as locadoras são grandes.
Oficialmente, a Abla (Associação Brasileira de Locadoras de Automóveis) fala em descontos de 15% em modelos de maior volume, chegando a 20% “em casos raros quando a montadora quer desovar estoque”, nas palavras do presidente da entidade, Paulo Miguel Júnior.
Fontes consultadas por nossa reportagem, porém, apontam para percentuais muito mais generosos, entre 28% e 30% em situações normais, alcançando até 35% quando a fabricante precisa esvaziar o pátio.
O mais surpreendente é que as locadoras também ganham isenção de ICMS. Ou seja: o valor pago por uma locadora para adquirir um zero-quilômetro é substancialmente mais baixo do que aquele que você, consumidor, encontrará para retirar o mesmo modelo de uma concessionária.
Atualmente, além de oferecer o serviço de aluguel para pessoas físicas e jurídicas, as locadoras também estão ingressando com cada vez mais veemência em serviços como locação para uso por aplicativos e… vendas de seminovos diretamente ao consumidor.
Como adquirem o veículo por um valor muito mais baixo do que aquele praticado no varejo, elas conseguem revendê-los como usados a valores mais altos do que o que foi pago pelo mesmo carro 0 km, mesmo após deixar o carro por um tempo no serviço de locação.
Só a Localiza, por exemplo, registrou nos nove primeiros meses de 2019 uma frota de 300.000 veículos, uma rede com 113 lojas dedicadas à venda de seminovos (rede maior do que a de marcas como Caoa Chery, Citroën e Peugeot), 105.550 usados comercializados no varejo e mais de R$ 600 milhões de lucro líquido.
Apesar de ter números mais modestos (45.000 usados vendidos a pessoas físicas nos nove primeiros meses do ano), a Unidas viu o setor de seminovos saltar de 29% para 65% na participação de seu faturamento nos últimos cinco anos, e o número de lojas subir de 27 em 2017 para 100 em 2019.
Com números de venda similares aos da Unidas, a Movida está registrando aumento de mais de 80% no mercado de seminovos.
Além das próprias fabricantes, que se submetem a apertar suas margens para garantir volume de vendas e fábricas operando com índices menores de ociosidade, quem também acaba afetado pela ofensiva das locadoras são as concessionárias.
Só conseguem fugir dessa lógica as marcas cuja capacidade produtiva está mais próxima da ocupação total, caso da Hyundai, ou aquelas que priorizam rentabilidade por unidade vendida no lugar de volume, como a Honda.
“Praticamente não trabalhamos com vendas diretas, justamente porque consideramos os concessionários nossos parceiros e achamos que é a nossa rede que deve ter prioridade”, afirma Issao Mizoguchi, presidente da Honda na América do Sul.
Procurada para dizer o quanto a rede de lojistas de varejo tem sido afetada por este novo cenário, a Fenabrave (associação nacional dos concessionários) não aceitou participar da reportagem.
Mas não pense que qualquer modelo serve para as locadoras. É verdade que hatches e sedãs compactos, especialmente com motor acima de 1 litro, são bem cotados.
O Chevrolet Onix, por exemplo, possui alta liquidez tanto para aluguel quanto para revenda, por isso virou a “menina dos olhos” das locadoras.
Já subcompactos como Fiat Mobi e Renault Kwid geram pouquíssimo interesse, pois provocam rejeição no mercado de locação e desvalorizam muito no de seminovos.
Sem ter as locadoras para comprar, resta às marcas desses modelos fazer o que a Renault praticou em setembro: faturou um lote de 700 Kwid para uma única concessionária de Curitiba (PR), com todos os veículos já emplacados.
Lá, eles são oferecidos não como 0 km, embora o sejam, mas sim como seminovos, com direito a desconto na compra e pagamento de IPVA e licenciamento do ano como bônus.
Esta tem se tornado uma tática alternativa comum para forçar a desova de um modelo sem precisar reduzir o ritmo de produção (e sem depender da negociação com locadoras).
Ainda sobre as locadoras, dois especialistas ouvidos por Quatro Rodas minimizam os impactos de sua atuação no balanço de fabricantes e concessionárias.
“O mercado está muito interessado nesse tipo de negócio. Nos Estados Unidos, as vendas diretas ultrapassam 50% do mercado”, compara Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento da Jato, consultoria especializada em mercado automotivo.
“As vendas diretas vieram para ficar, já que as do varejo estão sendo prejudicadas pelo poder de compra reduzido e porque os jovens estão perdendo o interesse em comprar um artigo que fica ocioso cerca de 90% do tempo. Por isso, empresas estão comprando carros para atender essa demanda”, acrescenta Antonio Jorge Martins, professor especializado em indústria automotiva da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Kalume Neto pondera: “Hoje em dia está muito fácil comprar um carro por venda direta. Qualquer pessoa que tenha um CNPJ consegue. É possível que o governo adote novas regras para coibir essa prática. Isso reduziria as vendas diretas para um terço do mercado, o que seria mais coerente com a realidade brasileira”.
Uma das medidas é o Projeto de Lei 3.844/2019, do deputado federal Mário Heringer (PDT-MG), que pretende estabelecer que um carro comprado por locadora com desconto de ICMS só poderá ser revendido após dois anos. Atualmente, a carência é de apenas um.
Paulo Miguel Júnior, presidente da Abla, defende a isenção: “Nosso setor recolheu em 2018 mais de R$ 5 bilhões em impostos. Importante esclarecer que o regulamento do ICMS traz em seu bojo que a venda de ativo permanente de empresas: após sua utilização para o fim a que se destinam, deve ser feita sem a cobrança de ICMS: trata-se de renovação necessária para o desenvolvimento da atividade.”
E as fabricantes, como ficam?
Para os especialistas, a retomada da rentabilidade das fabricantes instaladas no Brasil depende de fatores já pisados e repisados, como crescimento do mercado interno, aumento das exportações, redução de custos produtivos e tributação.
Mas também demandarão criatividade para aumentar receitas provenientes de serviços de pós-venda ou, até, de sistemas de aluguel e compartilhamento de carros oferecidos pelas próprias marcas, algo que a Toyota já tenta explorar no Brasil.
“Algumas montadoras já têm seu próprio modelo de negócios para aluguel de seus carros. As locadoras ganham em todas as frentes: compra, utilização e vendas, por isso as montadoras estão entrando nesse negócio”, analisa Milad Kalume Neto, da Jato.
“Atualmente o faturamento de todas as fabricantes com pós-venda e outros serviços não passa de 5%. Com essas novidades que estão vindo por aí, esse percentual pode chegar a uns 30%. Para fazer frente a esse desafio, é preciso uma mudança cultural importante”, complementa Antonio Jorge Martins, da FGV.
Apesar do cenário nebuloso, Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, mantém um discurso otimista:
“A gente acredita no país. Temos mais de 200 milhões de habitantes e o gosto pelo automóvel existe. Temos uma indústria moderna, muito atualizada. Apesar de toda essa crise, a indústria automobilística está investindo mais de R$ 40 bilhões para trazer novos modelos, novas tecnologias, novas metas de emissões e menor consumo de combustível até 2024. Tudo isso significa acreditar no país e apostar que a recuperação vem”. (Quatro Rodas/Henrique Rodriguez, Leonardo Felix e Thais Villaça)