O novo mapa das montadoras

Isto É Dinheiro

 

Um típico município do interior de São Paulo, Itirapina integra o chamado Circuito da Serra do Itaqueri, região entrecortada por morros, vales, reservas florestais, rios, cachoeiras e atrativos como a Represa do Broa. Essa paisagem se tornou o destino de muitos amantes dos esportes radicais. Mais recentemente, no entanto, ela atraiu outro público: os executivos da montadora japonesa Honda, que escolheram o local para instalar a nova fábrica da empresa no Brasil. Com um aporte de R$ 1 bilhão, a unidade entrou operação no fim de fevereiro. A cidade comemorou. Com o aumento de arrecadação, a expectativa é saltar do orçamento anual de R$ 70 milhões para R$ 150 milhões, em 2025.

 

A pouco mais de 240 quilômetros dali, outra cidade vive dias de espera. Mas o sentimento é de incerteza. Em meados de fevereiro, a Ford anunciou que irá fechar a sua fábrica em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, até o fim de 2019. Responsável pela produção de caminhões e do modelo Fiesta, a instalação emprega 2,8 mil funcionários diretos e outros 1,5 mil fornecedores. Uma projeção do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), a pedido da DINHEIRO, prevê, no entanto, uma redução de até 30 mil empregos em toda a cadeia, um contingente muito superior aos 17,9 mil habitantes de Itirapina.

 

Esses dois exemplos reforçam a consolidação de uma tendência e sinalizam uma nova rota para o setor automotivo. Berço do desenvolvimento da indústria automobilística no Brasil em meados da década de 1950, o ABC Paulista chegou a ser batizado de “Detroit brasileira”, em referência àquele que já foi o maior centro de produção de automóveis dos Estados Unidos. E assim como ocorreu na “motor city” americana, o ABC também perdeu espaço no novo mapa das montadoras. Esse movimento teve início em 1976, quando a Fiat inaugurou sua fábrica em Betim (MG). Mas ganhou tração de fato no fim dos anos 1990 e, especialmente, neste século. Marcas japonesas, sul-coreanas e francesas desembarcaram no País e, ao lado das gigantes Volkswagen, Ford, GM e Fiat, buscaram novas regiões para sua produção local.

 

Em 1990, quando a fabricação em São Paulo estava praticamente restrita ao ABC, o Estado respondia por 74,8% da produção brasileira. Hoje, esse índice é de 46,6%, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Polos mais novos, como Minas Gerais, Paraná e Bahia têm uma participação de 14,5%; 11,6% e 7,7%, respectivamente. Desde 2012, esses e outros Estados foram o berço de 14 projetos que, somados, concentraram um investimento inicial de R$ 17,8 bilhões. Em contrapartida, se concretizado, o fechamento da fábrica da Ford no ABC pode trazer sérias consequências para o setor em todo o Brasil. “Em dez anos, o impacto do fechamento dessa unidade pode ser superior a R$ 35 bilhões”, afirma Jefferson José da Conceição, economista e professor da USCS. “Suponho que entre 50% e 60% desses números refiram-se ao Grande ABC.”

 

Uma série de componentes explica a perda do domínio do ABC. A concentração da indústria no antigo polo foi o motor para o surgimento e a consolidação de um movimento sindical extremamente forte – e muitas vezes radical – na região. De lá para cá, não foram poucas as greves e paralisações que colocaram em xeque as estratégias das montadoras. “Esse contexto onerou a folha de pagamento e os encargos trabalhistas. Fabricar no ABC ficou mais caro”, afirma Milad Neto, analista da consultoria Jato Dynamics. O ambiente desencorajou investimentos e favoreceu a busca por cidades que, até então, não possuíam um histórico no setor. “As próprias estruturas dos novos projetos deixavam isso bem claro”, diz Paulo Roberto Garbossa, diretor da consultoria ADK Automotive. “Os portões passaram a ficar bem longe do chão de fábrica. Nem com os microfones mais sofisticados era possível ouvir qualquer manifestação.”

 

Fábrica no interior: com um investimento inicial de R$ 1 bilhão, a nova unidade da Honda no Brasil iniciou suas operações no fim de fevereiro em Itirapina, interior paulista. A unidade vai produzir o modelo Honda Fit e tem capacidade nominal de fabricação de 120 mil carros por ano.

 

Alto custo

 

O próprio desenvolvimento das cidades do ABC ajudou a frear a atratividade. Os custos imobiliários na região avançaram no decorrer dos anos, bem como o maior adensamento das áreas residenciais no entorno das fábricas. A hipervalorização do metro quadrado dificultou a busca por terrenos e trouxe desafios de logística para acompanhar o crescimento vivido pelo setor. A migração para praças mais distantes do principal mercado consumidor do País elevou os custos de distribuição. Mas esses fatores foram compensados, na maioria das vezes, em outras esferas. Com o poder de barganha de iniciativas bilionárias, capazes de gerar milhares de empregos e movimentar a economia de cidades até então com poucas perspectivas, as montadoras passaram a receber pacotes de incentivos fiscais nos âmbitos federal, estadual e municipal. O ABC perdeu a vantagem.

 

“Para todos os executivos da Ford, desde supervisores do chão de fábrica até gerentes e diretores, o anúncio de fechamento da fábrica não chega a ser uma grande surpresa”, garantiu à DINHEIRO um ex-alto executivo da empresa em São Bernardo do Campo. “Há muitos anos, talvez décadas, todos lá sabiam que a unidade é tecnologicamente defasada, subaproveitada e com baixa competitividade em termos de custos. O fechamento da unidade para melhorar a rentabilidade era uma questão de tempo.”

 

A descentralização em busca de menores custos de produção para as montadoras não é uma estratégia restrita ao contexto brasileiro. “Globalmente, a indústria automotiva vem perdendo sua força e suas vendas. E, cada vez mais, a briga por eficiência se dá na casa dos centavos”, observa Milad Neto, da Jato Dynamics. Essa abordagem também tende a privilegiar o investimento em novas unidades ou mesmo na modernização de fábricas mais recentes, em detrimento de projetos antigos e muitas vezes obsoletos. “Várias plantas tradicionais tendem a ser fechadas”, afirma Conceição, da USCS, destacando, entre outros aspectos, as estruturas que apresentarem maior dificuldade para a implantação de novas tecnologias.

 

Carga tributária

 

A mesma tendência ocorre em outras partes do mundo. A GM anunciou no fim de 2018 uma reestruturação que incluirá, entre outras medidas, o fechamento de quatro fábricas nos Estados Unidos, além de uma unidade no Canadá, com o corte de 14,5 mil empregos. A montadora já havia encerrado operações em países como África do Sul, Austrália e Rússia. O processo envolveu ainda a venda de negócios na Europa, em 2017, para a PSA, responsável pelas marcas Citroën, Peugeot, DS e Opel. A subsidiária brasileira da GM também está na berlinda. Em janeiro, a companhia ameaçou deixar o País, no que foi visto por parte do mercado como um blefe para pressionar sindicatos, concessionárias e o governo em busca de benefícios.

 

Em artigo publicado no dia 25 de fevereiro no jornal Valor Econômico, Carlos Zarlenga, CEO da GM para o Mercosul, respondeu às alegações de que o setor já goza de uma série de incentivos e, em contrapartida, pratica, historicamente, os preços mais caros da indústria global. Entre outros fatores, ele apontou a “carga tributária direta absurda” e afirmou que os encargos sobre a produção local de um veículo chegam a 50% de seu valor. O executivo citou ainda desafios como problemas de infraestrutura e a falta de uma política de impostos específica para desonerar a produção destinada à exportação. “Nossas fábricas são referência mundial em eficiência e produtividade. Nosso dever de casa já está feito e mesmo assim as contas não fecham”, afirmou.

 

Esse cenário de resultados restritos – e de paciência curta – ajuda a explicar o fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo. A empresa, que anunciou recentemente a decisão de direcionar seu foco para SUVs e picapes, registrou um prejuízo de US$ 4,5 bilhões em suas operações na América do Sul, entre 2013 e 2018. “Não existe empresa sem lucro. Companhia que não dá retorno fecha, quebra ou muda para outro lugar”, afirma Mauro Correia, CEO da rede de concessionárias Caoa, que também fabrica modelos da Hyundai, em Anápolis (GO). Ele também é presidente da Caoa Chery, negócio resultante da fusão, no fim de 2017, da marca brasileira e da montadora chinesa.

 

O executivo confirmou que o grupo, maior distribuidor da Ford na América Latina, tem interesse na aquisição da unidade em questão. Mas ressaltou que essa ideia ainda é embrionária. “Essa seria a melhor alternativa para esse caso”, opina Garbossa, da ADK Automotive, que aponta a figura de Carlos Alberto de Oliveira Andrade, fundador e presidente do Conselho de Administração da Caoa como a principal justificativa para essa afirmação. “Carlos é um Midas da indústria automotiva. Onde ele coloca a mão, dá dinheiro.”

 

Alianças

 

Todo esse panorama tem ainda como pano de fundo os desafios de reinvenção no caminho da indústria automotiva. Quatro elementos, em particular, compõem o quadro: carros elétricos, autônomos e conectados, além do compartilhamento de veículos, uma tendência em crescimento e que com alto potencial de impacto nas vendas no futuro próximo. “Esse momento requer um alto volume de investimentos em inovação e cada montadora está definindo sua estratégia, mas todas com um objetivo comum: aumentar a lucratividade”, diz Fernando Trujillo, analista da consultoria IHS Automotive.

 

Nesse percurso, a perspectiva é de um crescimento nas alianças entre as empresas do setor. “Vão surgir novos modelos de manufatura e não descarto, inclusive, o compartilhamento de produção”, ressalta Correia, da Caoa. Coordenador do MBA em Gestão Estratégica de Empresas da Cadeia Automobilística da Fundação Getulio Vargas (FGV), o professor Antonio Jorge Martins acrescenta: “Hoje, os ciclos de inovação são de, no máximo, dois anos e meio. E há novos nomes na jogada, como Tesla, Google e Uber”, afirma. “Para sobreviver, as montadoras tradicionais precisam dividir os riscos, os investimentos e o desenvolvimento.”

 

Descentralização: Pablo Di Si, CEO da Volkswagen para a América do Sul, vai levar parte dos modelos da montadora para a fábrica de São José dos Pinhais (PR), uma das mais modernas do grupo.

 

O exemplo mais contundente nessa direção envolve a parceria entre a Volkswagen e a Ford. Inicialmente, o acordo terá como foco as picapes e vans. Mas há espaço para que essa associação evolua para segmentos como carros elétricos, autônomos e serviços de mobilidade. Para a América do Sul, a expectativa do mercado mescla fatores positivos e negativos. O primeiro deles é a possibilidade de acelerar a chegada das inovações na região. Por outro lado, há o risco de redução das unidades de produção, já que as duas montadoras possuem um leque de fábricas no Brasil e na Argentina.

 

A própria Volkswagen tem trilhado o caminho da descentralização de sua produção, com a montagem de novos modelos em fábricas fora de sua maior unidade no Brasil, a da Anchieta, também em São Bernardo do Campo, a poucos quilômetros da fábrica da Ford. O mais recente lançamento da marca, o T-Cross, está sendo montado na planta de São José dos Pinhais, região metropolitana da capital paranaense. A fábrica, que completou 20 anos, ainda é considerada uma das mais modernas e produtivas do grupo em todo o mundo. “Para uma empresa do porte da Volkswagen, que caminha para assumir a liderança em todos os segmentos em que atua no País, é preciso estar no ABC, estar no interior de São Paulo, estar no Paraná”, disse o presidente e CEO para a América do Sul, o argentino Pablo Di Si. “A unidade de São José dos Pinhais está estrategicamente localizada perto do Porto de Paranaguá, assim como a fábrica da Anchieta tem posição privilegiada pelo Porto de Santos. Por isso, as particularidades de custo de produção de cada unidade são ajustadas, negociadas e revistas o tempo todo, caso a caso”, explica o executivo.

 

Por enquanto, a estratégia da Volkswagen de distribuir sua produção sem abrir mão das fábricas mais antigas parece estar dando certo. Segundo o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba, Sérgio Butka, a montadora tem se mostrado mais flexível e simpática nas mesas de negociações, assim como os sindicalistas estão mais amigáveis em troca de novos investimentos. “Nos últimos dois anos, 40 mil vagas formais foram extintas na indústria local, especialmente no setor metalúrgico. Os sindicatos, junto com as grandes empresas, estão em busca de recuperar o emprego perdido”, disse.

 

Na contramão: a Mercedes-Benz, do CEO Philipp Schiemer, está modernizando a sua unidade de caminhões em São Bernardo do Campo, como parte de um plano de investimentos de R$ 2,4 bilhões.

 

Aporte de R$ 2,4 bi até 2022

 

Nesse processo que pode envolver compartilhamento de fábricas com marcas rivais, negociações conjuntas de montadoras com sindicatos e até pedido de renovação de incentivos a governos, há quem escolha, em alguns casos, seguir sozinho. O que não significa a ausência de obstáculos à frente. Especialmente no mercado brasileiro. A Mercedes-Benz é um exemplo. No fim de fevereiro, a empresa inaugurou uma nova etapa do projeto de modernização de suas fábricas de caminhões e ônibus no Brasil, como parte de um aporte de R$ 2,4 bilhões para o ciclo de 2018 a 2022.

 

O alvo mais recente envolve a unidade de São Bernardo do Campo que, com um aporte de R$ 100 milhões, começou a trabalhar com novos recursos para a produção de cabines, sob o conceito de indústria 4.0. “Temos que fazer a nossa parte. Mas o País também precisa ajudar”, afirma Philipp Schiemer, presidente da montadora para o Brasil e a América Latina, para quem os empecilhos que encarecem a fabricação local não estão restritos ao ABC. Ele destaca que é preciso criar condições para que os produtos aqui sejam competitivos. “Enquanto outros países estão debatendo inovações, nós ainda estamos presos a discussões em torno das reformas. Se o Brasil não fizer a lição de casa, vai perder espaço no futuro.”

 

Apesar de reforçar essa visão, Martins, da FGV, destaca que o País seguirá entre as prioridades das montadoras. “Diferentemente de outros mercados, o Brasil ainda tem um alto potencial de crescimento. Enquanto nos EUA e na Europa a relação é de 1 carro por habitante, por aqui, essa média ainda é de 4,5” afirma. O Rota 2030, nova política traçada para o setor no fim do governo do ex-presidente Michel Temer e que oferece incentivos em troca de mais investimento em tecnologias e eficiência energética, é vista como essencial para a consolidação dos avanços necessários para que esse potencial se concretize. “Hoje, o Brasil ainda é apenas um seguidor de tecnologia”, diz Neto, da Jato Dynamics. “Mas essas novas políticas abrem a possibilidade para que o mercado local se insira, definitivamente, nesse novo mapa de produção global.”

 

Errata: O nome Caoa Chery foi grafado incorretamente na capa da edição 1111 da DINHEIRO. (Isto É Dinheiro/Hugo Cilo, Moacir Drska)