Um cartel na pauta do STF

O Estado de S. Paulo

 

Uma aberração será discutida em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma evidente violação das normas de concorrência, o tabelamento do frete rodoviário, será o tema do evento, programado pelo ministro Luiz Fux. A estranha audiência só ocorrerá porque esse tabelamento está sacramentado em lei apontada como inconstitucional em ações movidas por várias entidades, incluída a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Essa lei é inconstitucional e essa avaliação deverá ser confirmada pelo tribunal, disse na quarta-feira a ex-corregedora de Justiça e ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon, em seminário promovido em Brasília pela própria CNI e mais sete organizações empresariais, todas vinculadas ao agronegócio.

 

Segundo a jurista, ao programar a audiência o ministro Luiz Fux preparou o ambiente para qualificar a lei como inconstitucional. É inadmissível, acrescentou, a hipótese de conciliação quando se trata de ação de inconstitucionalidade. Sua opinião foi apoiada pelo ex-secretário nacional de Justiça Beto Vasconcelos. O cientista político Fernando Schüler, professor do Insper, declarou-se menos otimista: “Vivemos numa democracia instável e de baixo consenso, com pouca capacidade de definir rumos”.

 

O Judiciário, argumentou, tem formulado interpretações “muito flexíveis” da lei. Schüler atribuiu a esse fato parte da chamada insegurança jurídica no ambiente de negócios e lamentou o peso da pressão política em decisões do STF.

 

É difícil afirmar se a decisão do STF confirmará a análise técnica da ex-ministra Eliana Calmon ou a cautela política do professor do Insper. De toda forma, alguns fatos parecem muito claros. Em primeiro lugar, a criação de um cartel privado por meio de lei é uma evidente aberração. “É uma infração da ordem econômica”, já contestada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), lembrou o consultor Pedro Scazufca, sócio da GO Associados, também participante do seminário.

 

Em segundo lugar, a criação desse cartel impôs e continua impondo perdas inegáveis à economia nacional. A aprovação da tabela já afetou o transporte de mercadorias e de insumos, dificultando o andamento normal da produção e do comércio. Além de instituir a tabela de fretes, a lei proíbe acordos e contratos com preços abaixo dos níveis mínimos. A violação desse limite resultará, se a norma for aplicada com rigor, em punição para o contratante do serviço.

 

“O tabelamento tem o efeito de um novo tributo”, comentou o economista Claudio Frischtak, da consultoria Inter.B, na primeira parte do seminário. Mas esse tributo é particularmente ineficaz, acrescentou, porque é transferido diretamente a um grupo de interesse. Ao propor esse pacote, logo aprovado pelo Congresso, o governo, segundo Frischtak, ignorou problemas importantes do transporte rodoviário e criou o risco de seu agravamento.

 

Os custos do transporte, lembrou, estão em grande parte vinculados à escassez de investimentos em infraestrutura. Em vez de cuidar desse desafio, o governo criou um entrave para a atividade econômica e ainda desviou recursos para subsidiar o diesel. Investir esse dinheiro seria mais benéfico para a economia. Poderia ter lembrado o anuário da Confederação Nacional do Transporte: a malha pavimentada, apenas 12,4% do total das estradas, cresceu somente 0,5% entre 2009 e 2017.

 

Houve uma opção pela irracionalidade, disse o deputado federal Evandro Gussi (PVSP), um dos poucos parlamentares com voto contrário à criação da tabela do frete. A agropecuária brasileira, lembrou, conseguiu tornar-se uma das mais competitivas, mais sustentáveis e menos subsidiadas do mundo, mas sua eficiência pode ser facilmente comprometida por “irracionalidades flagrantes” como o tabelamento do transporte rodoviário.

 

Se o temor do cientista político Fernando Schüler se confirmar, o Judiciário dará sua bênção à criação de um cartel e a mais uma irracionalidade prejudicial à segurança jurídica e à prosperidade do País. (O Estado de S. Paulo)