Carros elétricos vão demorar para chegar ao Brasil, diz Ford

Portal Exame

 

Quando o irlandês Lyle Watters desembarcou no Brasil, depois de quatro anos na Europa, as montadoras de veículos brigavam para ver quem caía menos. Apenas naquele mês, agosto de 2016, as vendas despencaram 11%.

 

De lá para cá, a Ford conseguiu voltar ao time das quatro maiores automotivas do Brasil. Em 2016 ela tinha perdido o quarto lugar pela a sul-coreana Hyundai e ficado em sexto, atrás também da japonesa Toyota.

 

Como conseguiram? “Mudamos o ponto de vista do negócio para colocar o consumidor no centro. Isso significa mudar todo o funcionamento da companhia”, diz Watters.

 

Nos últimos quatro anos a companhia foi, das grandes, a que mais teve prejuízo no país: foram 11,9 bilhões de reais desde 2014, segundo levantamento da consultoria Roland Berger.

 

Com a retomada do consumo e a aposta da empresa em novos produtos, o executivo está otimista. “Algumas vezes demora mais do que prevemos mas em algum momento vai melhorar com as mudanças certas sendo feitas, internamente na companhia e no ambiente de negócios.” Leia a entrevista exclusiva do à EXAME.

 

O senhor já trabalhou como diretor financeiro da Ford do Brasil entre 2008 a 2012 e saiu para ser vice-presidente de Finanças e Planejamento Estratégico da Ford Europa. Em ambas as situações você teve de enfrentar crises. Acredita que isso ajudará a reverter as dificuldades pelas quais a Ford passa na América do Sul?

 

Eu saí daqui quando as coisas estavam indo muito mal e cheguei à Europa no meio da crise. Foi quase um batismo de gestão e liderança em crise. Quando recebi a ligação para voltar ao Brasil foi um momento interessante porque a Ford na Europa estava começando a se recuperar, estávamos voltando a ser rentáveis e dando lucro.

 

Eu vi a proposta como uma oportunidade de aplicar o que eu aprendi sobre como gerenciar um negócio em crise. Parte da lição é acreditar que as coisas vão melhorar. Pode demorar mais do que prevemos, mas, com as mudanças certas sendo feitas, internamente na companhia e no ambiente de negócios, em algum momento vai melhorar.

 

Você assumiu a liderança da região em setembro de 2016. De lá para cá, o que mudou internamente na empresa para prepará-la para a melhora do mercado?

 

Meu primeiro passo foi questionar se estávamos ouvindo o quanto precisávamos nosso consumidor. Se estávamos ouvindo suas dores, necessidades e desejos. Para isso, coloquei toda a diretoria para escutar, semanalmente, as ligações dos consumidores em nossa central de atendimento ao cliente. Porque estão ligando? Quais os problemas? O que se repete? Eles voltam, reportam o que viram, e pensamos, a partir disso, no que fazer para melhorar.

 

Mas o que isso significa para o dia a dia do negócio?

 

Quando falamos que mudamos o ponto de vista para um negócio com centro no consumidor, isso significa mudar todo o funcionamento da companhia. Se você tem um problema de qualidade, por exemplo, que não conseguiu resolver apropriadamente, tem que resolver com o time de engenharia.

 

E nossa área de engenharia e nosso centro de desenvolvimento têm de colocar aquilo como prioridade. Por exemplo: algumas vezes você não tem os estoques que são necessários e precisa, então, trabalhar com a área de compras para que isso seja resolvido. Muitas vezes precisa mudar o processo para trabalhar. E tudo precisa ser feito urgência.

 

A abordagem de consumidor no centro da tomada de decisão está mudando a maneira como operamos. Quando você fala em melhorar a satisfação dos consumidores, você tem que lidar com críticas em todas as partes do carro e mudá-las se for necessário e, muitas vezes, urgentemente.

 

Quais resultados auferiram dessa mudança de foco?

 

No índice de satisfação de vendas, publicado recentemente pela consultoria americana J.D. Power que analisa satisfação de vendas de automóveis, subimos de oitavo para terceiro lugar no mercado. Um exemplo de pós-venda foi o trabalho que fizemos nas revisões e consertos de carros nas concessionárias.

 

Uma queixa recorrente dos clientes era de que demorava muito para o carro ficar pronto. Identificamos que o problema era a falta de peças e aumentamos, então, os estoques das peças que saiam mais. Com isso, reduzimos o tempo médio dos reparos em 86% e em 93% no número de carros parados, ou seja, que precisavam ficar mais de um dia na concessionária.

 

Também implementamos um sistema de acompanhamento em tempo real dos carros parados nas concessionárias, o que permitiu que os times pudessem agir de forma mais rápida para a resolução do problema.

 

Conseguimos, assim, ser a marca que mais cresceu no ranking de satisfação do cliente, feito pela consultoria especializada J.D. Power. Passamos do oitavo lugar, em 2016, para o terceiro, ano passado. E, também em 2017, aumentamos em quase 15% as vendas.

 

Uma queixa do mercado com a Ford é que a empresa lança poucos carros inéditos, apesar de seus clássicos EcoSport e Ka estarem entre os mais vendidos há anos. O que a empresa está fazendo para mudar essa percepção?

 

Faremos anúncios de mais investimentos em breve, mas, teremos sete novos carros em 2018 aqui este ano. Alinhado ao nosso foco no consumidor, entendemos que as tendências estão mudando no Brasil e que as pessoas estão procurando, por exemplo, utilitários SUV. Estamos trabalhando em todas essas novas tendências, algumas mais avançadas e quase prontas, outras mais distantes, mas que já estamos de olho.

 

Um deles é o Ka Freestyle, que já lançamos e será vendido no segundo semestre, um carro intermediário entre um veículo de passeio e um SUV. Outro que estamos trazendo é o Mustang, que vai custar 299 900. Agora sentimos que é a hora de tê-lo no Brasil. É parte importante da nossa história, um carro esportivo com performance diferenciada.

 

Ainda que o volume de vendas não seja tão grande, vemos que agora vale a pena. Já temos mais de 150 encomendas, ou seja, pessoas que já depositaram a entrada de 30 000 reais para garantir um.  Teremos produtos novos, repaginados e inovadores.

 

E quanto a montadora está prevendo de investimentos para este ano no Brasil?

 

Ainda não podemos falar de investimentos específicos, falaremos. Mas, por enquanto, nós asseguramos que estamos comprometidos com o desenvolvimento do mercado brasileiro e que faremos investimentos importantes. Nosso centro de desenvolvimento de produtos em Camaçari é um dos principais do mundo.

 

Somos a única montadora que desenvolve aqui produtos globais, como EcoSport e Ka, que estão agora em todos os continentes. Se tivermos um problema com o EcoSport na China, são engenheiros de Camaçari que vão resolver o problema. Tem a responsabilidade pelo carro.

 

As montadoras tradicionais parecem ter acordado para a necessidade de pensar no futuro, que, muitos especialistas apontam, será elétrico, autônomo, menos poluente e com serviços de mobilidade urbana. O que a Ford tem feito neste sentido? Teremos alguma dessas inovações no Brasil em breve?

 

Estamos sim pensando na próxima onda que virá. Nos Estados Unidos, já temos serviço de compartilhamento, por exemplo.  Ainda não temos nada na América do Sul, mas, por que não poderia ser uma oportunidade no futuro? Eletrificação é outra frente que estamos investindo bastante.

 

Mas eu acho que vai demorar um pouco mais no Brasil, mas vai chegar. Veremos primeiro a expansão nos EUA e Europa nos próximos três a quatro anos e globalmente até 2030. Esperamos que, até esta data, um terço do mercado seja de veículos com biocombustível, outro terço, híbridos e o terço restante elétrico. O Brasil deve ficar uns anos atrás pela falta de infraestrutura adequada, mas é algo para já começar a pensar agora.

 

A Ford conseguiu, em 2017, voltar ao time das quatro maiores montadoras em vendas no país. Agora que a crise parece ter passado, a empresa está preparada para brigar pela liderança?

 

Houve uma mudança no comportamento do consumidor, o mercado está otimista para 2018 tanto para o mercado interno quanto para exportações, que também ajudaram durante a crise. E estamos preparados para a retomada do mercado. Sempre acreditei que uma organização não pode desperdiçar uma crise.

 

Não pode sentar e esperar a recuperação, tem que aproveitar, por exemplo, para reavaliar onde há ineficiências e podemos reduzir custos para preparar a organização para o próximo ciclo de crescimento.

 

Além da mudança de foco para o cliente, implementamos uma política de zero desperdício. Não temos luxo na empresa e não gastamos dinheiro desnecessariamente. Tudo o que pudemos, alocamos no desenvolvimento de novos produtos, o que é importante para o mercado e consumidor.

 

Alguns especialistas questionam o otimismo do setor porque o crescimento do ano passado foi calcado em vendas diretas, a grandes frotistas e locadoras de veículos e não na recuperação do consumo do varejo. É sabido que as margens para estes carros são menores para as montadoras. Para vocês isso é preocupante?

 

Você tem razão. De fato, no acumulado do ano passado, as vendas ao consumidor ainda estão menores e aos frotistas, crescendo. Uma das razões para isso é que a taxa de juros para consumidores financiarem automóveis ainda é muito alta e, obviamente, com a inadimplência alta e desemprego, o crédito também está restrito.

 

Já as os grandes frotistas têm crédito. Nós temos a convicção de que o consumo vai reagir, apesar de as taxas de juros demorarem para cair no setor automotivo. (Portal Exame/Naiara Bertão)