Renault Kwid encara versões mais baratas de Fiat Mobi e Volkswagen Up

Car And Driver

 

Ter um carro, pelado, sem opcionais é como amar sem beijar. Talvez você só esteja largando as dúvidas de um carro usado, ou de gastar sola de sapato, por algo menos dolorido. Mas talvez seja o amor da sua vida, e você sofre por não querer admitir. Nesse universo espartano, as opções já foram mais queridas pelos brasileiros. Modelos de entrada há tempos não vivem dias de glória. Chery QQ, Fiat Mobi e VW Up somaram 44.747 unidades vendidas no primeiro semestre, pouco mais da metade das vendas do líder, o Chevrolet Onix (83.236 emplacamentos). Uma clara amostra de que brasileiro só gosta de sofrência no rádio do carro; afinal, o Chevrolet é um modelo bem mais ajeitado e equipado perto dos três.

 

Mas e quem tem entre R$ 30 mil e R$ 40 mil para gastar: como faz? Geralmente, este cliente gasta mais dinheiro para ter quase a mesma coisa. Pensando nessa demanda reprimida, e em um momento de crise que parece interminável, a Renault oferece o Kwid ao preço de R$ 29.990, na versão Life. Modelo que devolve ao brasileiro a possibilidade de entrar no universo dos zero-km por menos do que os R$ 34.210 pedidos pela Fiat por um Mobi Easy, ou os R$ 37.990 por um VW Up na versão Take. E isso é um achado! Não à toa mais de 10 mil pessoas fizeram a reserva de uma das três versões do compacto, com o famoso “milão” em três vezes no cartão. Tacada de gênio? Veremos.

 

Em comum eles têm pouco a oferecer. Não há ar-condicionado, direção hidráulica nem travas ou vidros elétricos de série. Aqui você não será amado de verdade, e não terá quase nenhum respeito na cidade. Mas se a grana só dá para isso, saiba nas próximas linhas qual desses ícones da sofrência automotiva é capaz de não sair da sua cabeça.

 

3º Lugar – Fiat Mobi

 

O relógio está girando e esse Mobi Easy aqui perdendo tempo. Se ele não custasse R$ 34.210 dava até para decidir dar uma volta na cidade com ele, mas o preço é um impeditivo quando você analisa o carro com mais profundidade. Começa pelo motor 1.0 EVO com quatro cilindros que deve em eficiência para a dupla desafiante, tanto no consumo quanto em desempenho. Ele foi o que mais bebeu, com média PECO (55% na cidade e 45% na estrada) de 10,4 km/l e ainda ficou na década passada na hora de acelerar. Fez de 0 a 100 km/h em 16,4 s, quase 3 s atrás do novato da Renault. “Ah, mas o Kwid é pesa só 780 kg”, poderão dizer os fãs do Fiat. Balela. O Up pesa 922 kg e não desafina tanto na hora de acelerar. Fez de 0 a 100 km/h em 14,6 s. Esse motor é tapa, não é beijo.

 

Depois da impressão inicial sofrível quanto à dinâmica, acompanhada de pedais levemente deslocados à direita, um assento alto demais e uma haste de câmbio onde parece que faltou fixarem alguns parafusos, a lista de equipamentos de série dá outro susto. Tem tantas linhas quanto a da lista de compras de alimentos de um faquir. Além de itens que nenhum dos concorrentes traz como ar-condicionado, direção hidráulica e vidros e travas elétricas, a Fiat dispensa coisas como uma simplória preparação para sistema de som e desembaçador elétrico traseiro, presentes no Kwid, ar-quente para o desembaçador dianteiro e lavador do vidro traseiro, presentes no Up.

 

Decide aí 

 

Sua concepção também é, por assim dizer, incompreensível até perto dos outros compactos. Além do motor – sim, eu vou falar sempre que esse quatro-cilindros não deveria estar aqui – ele tem o menor entre-eixos entre os carros fabricados no Brasil, com 2,30 m e um espaço traseiro que faz uma solitária com seis pessoas parecer espaçosa. O porta-malas é outro impeditivo para quem não quer sofrer. São 235 litros, contra 290 litros do Kwid e 285 litros do Up. Você viaja e não leva quase nada do que é seu. Sanfona e violão ficariam apertados ali. A tampa do porta-malas de vidro completa a desconfiança em tudo o que você enxerga do banco do motorista para trás.

 

As sensações a bordo não valem os mais de 10% que custa frente ao Renault. Apesar de a suspensão traseira contar com eixo de torção, como no Up, em vez do arcaico eixo rígido do Kwid, ela se mostra uma tanto flácida demais em qualquer velocidade. Especialmente abaixo dos 60 km/h. Mas, tudo bem. Pois do jeito que o asfalto das grandes cidades está, é melhor você estar em algo mais próximo de um colchão d’água que de um carro. As rodas de 13” só estão presentes aqui; nos concorrentes elas são de 14” de série.

 

O Mobi também cobra mais que os concorrentes na hora da manutenção. Ele tem o valor de seguro mais salgado entre os três e as revisões até 60 mil quilômetros custam R$ 3.528, valor 59,2% maior do que a Renault cobrará com o Kwid. Algo um tanto injustificável. Vale lembrar que o Mobi Drive, com motor 1.0 três-cilindros começa em R$ 41.260. Mas se mesmo assim estiver “facinho” de você fazer uma besteira, por causa do desenho robusto e cheio de vincos, eu pego minhas coisas e sumo. Decide aí, enquanto eu vou dar uma volta no Kwid.

 

2º Lugar – Renault Kwid

 

Você vai me odiar, mas eu vou te contar que esse Kwid merece o seu dinheiro e um canto no seu lar. Ele convence de verdade, mas a culpa foi minha. Tenho uma queda por carros, digamos, irritados. O Kwid está muito longe de ser um esportivo, mas a esperteza que ele acumula com a junção do peso baixo com um motor de 70 cv, mais o pigarro que o três-cilindros tira da garganta a cada acelerada me pegam de jeito.

 

O 1.0 faz de 0 a 100 km/h em um tempo decente para quem custa R$ 30 mil. Seu torque de motocicleta – são 9,8 mkgf – chega à plenitude só a 4.250 rpm, mas ele mantém a velocidade sem asma em baixas rotações. Eu nunca pensei que um dia ia escrever isso de um carro nacional barato. Desde o Fiat Uno Mille Brio.

 

Pode ser que você ache que o Kwid é um carro indiano reformado e sem limpador do vidro traseiro (aqui a gente explica bem essa história) e de baixa qualidade. Mas não viva do achismo. Não foi só pelo desempenho que ele quase venceu a disputa. Há aqui uma questão social simples e didática. A proposta de um carro tão acessível sem um decréscimo estupidamente descarado de qualidade merece ser louvado em tempos de crise.

 

Sua glória começa com espaço decente para quatro ocupantes, passa por um porta-malas, que se não é uma arena de rodeio, mostra honestidade franciscana e termina com preços de manutenção (R$ 1.100 de seguro e R$ 2.215 até os 60.000 km) de acordar um prédio e fazer inveja para o povo.

 

Que sorte a nossa

 

Sim, há detalhes que o fazem mais barato que a concorrência. Onde há menos material há, portanto, menos custo. Nas rodas são apenas 3 parafusos, no para-brisa apenas uma palheta, não pense em ver um lavador no vidro traseiro e as borrachas internas das portas são feitas de uma única peça que também veda a parte externa. Seus assentos vêm da Índia e são mais finos do que você está acostumado a ver, os freios têm discos sólidos e o cabeçote do 1.0 SCe perdeu o comando de válvulas variável e o regenerador de energia. Isso também ajuda na redução do peso (são apenas 780 kg), outro fator preponderante para as impressões ao dirigir elogiáveis e para a média de consumo de 10,8 km/l.

 

É bom dizer que o acabamento é feito com plástico bem duro e que não há nem conta-giros no painel? É. E também que se o motorista for grandalhão vai esmagar as pernas de quem senta atrás. Mas se tiver menos de 1,80 m a história é quase de paixão. Há um metro do assento ao teto. Seu problema mesmo é ser estreito. Dois caras gordinhos se esbarram nos bancos da frente. A largura total é de 1,58 m, contra 1,63 m do Mobi e 1,64 m do Up.

 

Há outro mal do qual ele padece: acima de 100 km/h a influência do vento é bem perceptível. Essa história de SUV dos compactos (certificado pelo Inmetro) o colocou a 18 cm do solo e, mesmo com rodas de 14”, a aderência é prejudicada. Isso tem pouco a ver com o eixo rígido na suspensão traseira, e mais com a aerodinâmica. O Kwid é um carro bem estável em velocidades até 100 km/h e suporta com coragem buracos, valetas e lombadas. Arriscamos até uns cavalos-de-pau com ele na pista de testes – local seguro e controlado – e ele não capotou como você poderia imaginar de algo com um preço tão camarada e esse tipo de suspensão. Que sorte a nossa! Se a sua grana está curta, nem vire para ver o Up. Vem sofrer com o Kwid!

 

1º Lugar – Volkswagen UP

 

Uma vitória suada de um carro que não tenho coragem de desgostar. Lembro do lançamento em 2014. Era a primeira vez que alguma fabricante havia feito um carro 1.0 com preço na casa dos R$ 30 mil, que só parecia um carro de R$ 30 mil antes de você dirigi-lo. Ele tirou aquele medo bobo de comprar um carro barato. Mas não foi isso o que aconteceu, e as vendas nunca decolaram. Talvez porque você não o experimentou. Foi assim comigo também. Mas na hora que eu guiei, foi bem melhor que imaginei. Se soubesse tinha feito antes.

 

Vale lembrar que o VW ficou dois míseros pontinhos à frente do Kwid no comparativo, e a maior diferença entre os dois está justamente na razão de ser do Renault: o preço. Considerando a sensibilidade dos bolsos médios, uma diferença de 26,7% no preço final é quase como mudar de categoria. Nem a gasolina sobe tanto. Mas o Up justifica tanta grana a mais?

 

Feito com padrões de construção semelhantes ao modelo alemão, o VW é um exemplo de carro compacto. Aços de alta e ultra-alta resistência na composição e uso de técnicas de segurança no padrão internacional fazem dele um carro nitidamente melhor e com uma atmosfera de segurança sem igual. A conclusão veio pelo teste de colisão do LatinNCap, onde ele conseguiu 9 das 10 estrelas (5 para o motorista e 4 para quem viaja no banco traseiro) possíveis no teste. E isso tem um preço cobrado no bolso e no peso do carro. Com 3,60 m de comprimento, 1,64 m de largura e um entre-eixos de 2,42 m ele vai a 922 kg na versão básica, a Take.

 

Clássico

 

A lista de equipamentos também se equivale à do Kwid, mas ele tem lavador do vidro traseiro, suporte para celular e entrada USB para carregamento, ausentes no Renault, mas traz apenas dois airbags, em vez dos quatro presentes no Kwid. Talvez porque ele não precise de mais dois e o Renault, sim. Outros equipamentos valorosos nesse deserto de mimos são a regulagem de altura do banco do motorista e a chave no estilo canivete de série. O espaço interno no geral é o melhor dos três. Mais largo do trio, ele só perde para o novato quando você mede a altura do assento ao teto no banco traseiro: aqui há 95 cm, no Kwid são 99 cm.

 

À exceção do disparate na qualidade de construção, nível de segurança e equipamentos extras, o Up é equilibrado com os rivais em desempenho. Com um motor 1.0 capaz de gerar 82 cv e 10,4 mkgf a apenas 3.000 rpm ficou um pouco atrás do Kwid, no meio do caminho entre ele e o Mobi. Mas o torque que aparece cedo faz uma boa diferença quando você está na estrada, a partir dos 100 km/h. Ele consegue retomar velocidade mais rápido que os rivais quando se está em quinta marcha, algo que só o Renault faz com alguma decência.

 

A suspensão transmite mais qualidade, definitivamente não parece que se está no carro mais barato de uma marca. Se você compará-lo ao Gol ou ao Fox de mesmo motor, vai ficar na dúvida sobre qual faz você sofrer menos. E aposto algumas fichas que escolherá o Up. O consumo médio é de 10,9 km/l e as revisões até 60.000 km passam pouco dos R$ 3 mil. Se o seu estilo é a sofrência brasileira, prepare-se para mudar. O Up é um clássico mundial. (Car And Driver/Raphael Panaro)