O Estado de S. Paulo
Estou ensaiando para escrever esse post desde outubro. O motivo da demora é que, desde então, venho colhendo dados e analisando fatos para chegar a uma conclusão: esta é ou não uma análise válida? Mais de dois meses depois, concluo: é sim. Especialmente no segmento de entrada, os carros brasileiros correm o risco de voltarem a ser “carroças”.
Antes que alguém fique bravo, escrevi carroças entre aspas para deixar claro que o sentido é figurado. Para contextualizar: no início dos anos 90, quando autorizou a reabertura das importações de veículos, o então presidente Fernando Collor disse que os carros brasileiros eram todos “carroças”.
Collor se referia à qualidade dos automóveis, infinitamente inferior ao de veículos vendidos nos Estados Unidos, Europa e Ásia. Então, os importados voltaram e o consumidor passou a experimentar o gostinho de ter veículos bem superiores aos nacionais.
A indústria local, evidentemente, teve de se mexer. Até porque com a estabilidade econômica alcançada no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, novas montadoras chegaram ao País: Honda, Toyota, Peugeot, Citroën e Renault, para citar algumas.
Porém, quando elas chegaram, no fim dos anos 90, o Brasil já mergulhava em uma forte crise, que se agravou nos anos seguintes. O planejamento de fabricação local havia sido feito pelo menos três anos antes, com o País em alta. Então, quando a nacionalização enfim começou, o mercado ganhou carros brasileiros de alta qualidade, em dia com o que era vendido nos países mais desenvolvidos, mas não tinha consumidores suficientes para comprá-los.
Quando comecei a atuar no jornalismo automobilístico, em 2003, a crise estava afetando a qualidade dos carros brasileiros. A Chevrolet fazia atualizações em carros antigos, mas não investia em novas gerações de modelos como Corsa e Astra. Pelo menos, não em novas gerações em dia com as europeias.
O mesmo ocorreu com o Volkswagen Golf. Na Europa, o modelo chegava à quinta geração. Por aqui, a VW fez uma gambiarra à brasileira. Reestilização forte sobre a quarta geração. “Carro desenvolvido no Brasil”, era o que diziam. Seria lindo ter carros desenvolvidos no Brasil, se esses carros tivessem alta qualidade. Não era o caso: essas marcas estavam, na verdade, praticando a boa e velha redução de custos.
Já deu para perceber que estamos vivendo agora um momento muito parecido? De 2007 em diante, o mercado automobilístico passou a bater recorde atrás de recorde. O Brasil estava em alta, éramos a bola da vez e chegamos ao posto de quarto maior mercado automotivo do mundo! À frente, apenas China, EUA e Japão.
Quando viajávamos a salões internacionais, quase tudo era sobre o Brasil. Até porque havia uma crise nos mercados americano, europeu e japonês. Então, depois da China, éramos prioridade para as montadoras, pois, além de estarmos em alta, nosso potencial de crescimento era imenso.
Vieram novas fábricas, com destaque para a Hyundai. A Nissan, que já tinha uma planta em conjunto com a Renault no Paraná, inaugurou outra, no Rio de Janeiro. Marcas como Audi e Mercedes, que haviam sido fabricantes, e desistiram da empreitada na crise da primeira metade dos anos 2000, anunciaram que voltariam à condição de montadoras. Duas novas marcas de luxo vieram produzir aqui: BMW e Land Rover.
Estava tudo lindo, mas, aí, veio uma nova crise, que deu seus primeiros sinais em 2012, e foi se agravando desde então. O ano de 2014, o da Copa, começou a desenhar o caos que viria a seguir. Em 2015, após a eleição, o caos chegou de vez. E só piorou neste ano.
Novas montadoras e novos carros de alta qualidade já estavam aqui. Haviam acabado de chegar. Mas, novamente, não havia consumidores para eles.
Em setembro, o presidente da FCA (Fiat-Chrysler), Stefan Ketter, veio à redação do Estadão conversar com jornalistas do Jornal do Carro e da editoria de Economia. Foi claro: o Brasil precisa de planejamento de longo prazo. Soluções pontuais – como reduzir IPI por um determinado período – não funcionam mais.
Minha interpretação: é preciso lançar medidas coesas e progressivas, não gambiarras à brasileira para apagar incêndios. Caso contrário, a confiança do País no exterior irá, de vez, para o ralo. Em um período de menos de 20 anos, afinal, temos situações muito semelhantes. Ninguém mais está disposto a investir alto em um país com tantos altos e baixos e cujo governo muda sempre as regras no meio do jogo.
Saindo do contexto macroeconômico, chegamos ao Salão de Paris, em outubro, no qual este post começou a tomar forma. O Brasil, que era tudo, passou a ser nada. Sério: absolutamente nada. Deixou de ser citado nos discursos, de ter espaço para entrevistas exclusivas com os executivos das matrizes das montadoras. E, principalmente: não há mais carros mundiais planejados para o País.
Todas as novidades do Salão de Paris destinadas ao Brasil são importadas. Os importados sempre vêm. Há o processo de homologação, claro, mas isso não demanda um grande investimento. Se as importações estão abertas, eles vêm.
Porém, nos próximos anos, não espere mais carros nacionais em dia com o de mercados automotivos de países desenvolvidos. Ao menos, não em segmentos com preços iniciais abaixo de R$ 70 mil.
Em Paris, foi revelada a nova geração do March, que é feito no Brasil. O franco-brasileiro Carlos Ghosn, presidente da Renault-Nissan, foi enfático em uma coletiva de imprensa: não, ele não será produzido no Brasil. Agora, pelo menos, não. Com o mercado do jeito que está e com todas essas incertezas, não.
Outro brasileiro cuja nova geração foi revelada no evento francês é o Citroën C3. Mesma resposta sobre a possível nacionalização da nova geração: não ocorrerá. Os motivos? Os mesmos alegados por Ghosn.
Vamos aguardar agora o Salão de Detroit, em janeiro, nos EUA, para saber se o novo Fiesta será nacionalizado. Minha aposta: não. É possível que seja vendido no País, mas em versão importada do México, como já ocorreu anteriormente.
E o que ocorrerá com esses carros, então? Talvez saiam de linha, mas o mais provável é que recebam a boa e velha gambiarra à brasileira. Uma reestilização aqui, novos itens ali, e a total impossibilidade de ter novas e importantes tecnologias, uma vez que suas plataformas não vão permitir – e, no mundo atual, as inovações tecnológicas são feitas rapidamente, a ponto de um carro lançado dois anos antes de um concorrente ficar logo defasado (mas isso é assunto para outro post).
Há uma esperança, no entanto. Só que ela não está no segmento de entrada, cujos carros devem ficar, no sentido metafórico, cada vez mais próximos das “carroças” de Collor. A esperança está nos automóveis de segmentos com preços acima de R$ 70 mil, ou R$ 80 mil (os preços estão subindo tão rapidamente que está difícil falar sobre uma determinada faixa).
Isso porque, embora a crise atual seja parecida com a de cerca de 15 anos atrás, as coisas evoluem, e as empresas aprendem a entender o mercado. A Hyundai é um bom exemplo disso (o que também é assunto para outro post). Hoje, o segundo maior segmento do Brasil é o de utilitários-esportivos, atrás apenas do de hatches compactos – e à frente do de sedãs compactos.
Além disso, modelos desse segmento – e dessa faixa de preço – estão sofrendo bem menos que os de entrada, já que, em tempos de crise, os consumidores dos carros de base sofrem mais. Some a isso o fato de que o pessoal da classe média, que estava migrando para sedãs e utilitários de marcas de luxo, está voltando aos velhos e bons Honda, Toyota e cia.
E esse é o ponto mais importante. Um consumidor que teve experiências com carros de alta qualidade não vai aceitar uma gambiarra à brasileira. No passado, Golf, Vectra e Astra, entre outros, tiveram soluções caseiras. Hoje, talvez isso não funcione mais, o que pode levar as montadoras a concentrarem seus investimentos na inovação para esse tipo de carro. Carros esses que, aliás, promovem margem de lucro bem maior que os de entrada.
Porém, isso não é bom. Isso é voltar a elitizar o automóvel. Além do prejuízo ao consumidor, há também um prejuízo à indústria, que tende a ficar menor. Em qualquer mercado, os carros básicos são os de volume. No mundo ocidental, a exceção é os Estados Unidos. O governo até tenta incentivar uma mudança, mas o consumidor americano gosta mesmo é de carro grandalhão.
Então, uma indústria sem investimento em carro básico é uma indústria pequena, elitizada, de nicho. Sem relevância mundial. Sem altos investimentos.
Por fim, vale uma consideração. Seria muito legal se, agora, o Brasil tivesse carros desenvolvidos exclusivamente para o País (e produzidos em outros mercados, preferencialmente de países desenvolvidos), se esses carros fossem bons. Não iguais, mas ao menos em dia com o que há de melhor no mundo. Seria muito legal se o “boom” de nossa indústria automobilística tivesse criado fortes setores de desenvolvimento de produto.
Este era um dos objetivos – talvez o único objetivo válido – do equivocado Inovar-Auto, o regime automotivo protecionista que não deverá ser renovado. Agora, teremos sim carros desenvolvidos aqui, mas não automóveis de primeiro, e sim gambiarras à brasileira de baixo custo.
Assim, faço uma menção honrosa ao Ford Ka. O modelo desenvolvido no Brasil acaba de chegar ao mercado europeu. O fato é que vai para países do leste do continente, principalmente, mas foi lançado também na Inglaterra, segundo maior mercado da Europa – atrás da Alemanha. Provavelmente, não teremos nenhuma outra história assim nos próximos dez anos, pelo menos.
Eu gostaria de encerrar meus posts analíticos do ano com algo mais otimista. Infelizmente, não deu. O mundo do automóvel no Brasil vai mal. Ficamos na torcida para que a economia melhore e a venda de automóveis também. Afinal, o mercado de automóveis sempre foi o termômetro da economia no País. Se ele vai mal, o País também vai. (O Estado de S. Paulo/Rafaela Borges)