O Estado de S. Paulo
Ouvir o som da campainha ou a chamada do carteiro no portão de casa tornou-se um trauma para trabalhadores da Mercedes-Benz, em São Bernardo do Campo, conhecida como a cidade das montadoras, no ABC paulista. O temor de receber um telegrama com aviso de demissão é geral entre os funcionários da maior fabricante de comerciais leves do País.
Na última segunda-feira, toda a produção de caminhões, ônibus e peças foi suspensa e a empresa deu licença remunerada para a maioria dos mais de 9 mil trabalhadores da fábrica, sem data para retorno. No mesmo dia, a Mercedes começou a enviar telegramas com datas agendadas para o funcionário assinar a rescisão de contrato.
O grupo alega ter mais de 2 mil trabalhadores excedentes, depois que a produção caiu mais de 50% em razão da crise que derrubou as vendas. “Se for mandado embora será uma catástrofe, principalmente no momento atual, em que não se consegue outro emprego”, afirma Luiz Carlos Daniel, de 51 anos, dos quais 32 como funcionário do setor de ferramentaria.
Ele mora em Mauá com a mulher e a filha de 25 anos, que não trabalham. Também da ferramentaria, Graicon Figueiredo, de 47 anos e há 12 anos na Mercedes, afirma que a aflição é constante. “A gente adia projetos, não consegue fazer planos, não assume compromissos.”
Com 60 anos de Brasil, comemorados em abril, a montadora alemã afirma passar pela pior crise de sua história no segmento de veículos pesados. A fábrica do ABC tem capacidade anual para produzir 80 mil caminhões, mas este ano deve fazer menos da metade desse volume. A crise, contudo, não adiou a inauguração da fábrica de carros de luxo do grupo, em março, no interior de São Paulo.
Nos últimos dois anos, quando a crise começou a se aprofundar, a montadora adotou diversas medidas para evitar demissões no ABC, como férias coletivas, semana reduzida de trabalho, lay-off (suspensão temporária de contratos) e o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que reduz jornada e salários.
A difícil situação do mercado brasileiro, que segue para o terceiro ano consecutivo de queda nas vendas de veículos, resultou para a companhia em uma redução de receitas, informa a direção da Mercedes.
“Inevitavelmente, com isso, é imprescindível também reduzir os custos de operação e administração na fábrica de São Bernardo”, diz a empresa. Reduzir drasticamente o quadro de pessoal também será inevitável. “Se a empresa não conseguir efetivar essa redução, vamos comprometer os investimentos planejados para o futuro.”
O Sindicato dos Metalúrgicos tentar negociar uma saída menos traumática, mas seus dirigentes reconhecem que a tarefa é difícil. Desde quarta-feira ocorrem negociações, mas sem avanço. Enquanto isso, trabalhadores têm as vidas suspensas.
“Onde passava o tiro, eu me abaixava”
“Onde passava o tiro eu me abaixava”, brinca Ivan Bezerra, ao explicar como conseguiu, em 12 anos de trabalho na Mercedes-Benz, ficar de fora de todos os programas de lay-off (dispensa por até cinco meses), adotados a partir de 2014 como forma de manter a mão de obra empregada, enquanto o mercado não volta a comprar caminhões e ônibus.
Ele não escapou, porém, das férias coletivas, licenças remuneradas, folgas e da redução da jornada e dos salários em 20% durante a adesão da montadora ao Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que tem parte do corte salarial bancada pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Bezerra, de 41 anos, trabalha atualmente na área de CKD (veículos desmontados para exportação), mas já passou pelos setores de motores, funilaria e pintura. “Já rodei quase a fábrica toda.”
Ele vive numa casa própria em Mauá, no Grande ABC, com a mulher e dois filhos, de 14 e 18 anos. “Eu fico na expectativa, pois a minha renda é a única da família e não quero ser mais um desempregado.”
Ele conta que vários familiares estão sem trabalho, incluindo a irmã, “que tem curso superior, pós-graduação e atuava na área de Recursos Humanos”.
O filho do metalúrgico concluiu há seis meses o curso técnico de mecatrônica e vem procurando emprego desde então. “Não conseguiu nem estágio”.
Bezerra diz entender a situação da Mercedes, mas ressalta que, nos anos em que ela batia recordes de produção, ninguém se recusava a fazer horas extras, a trabalhar nos finais de semana. “Em 2011, fizemos 40 dias de jornada extra; ninguém tinha preguiça”, lembra.
Naquele ano, a indústria automobilística brasileira registrou produção recorde de caminhões, com 223,6 mil unidades, e de ônibus, com 49,4 mil unidades. Para este ano, a previsão total para veículos pesados é de 94,6 mil unidades.
“Agora que tem a crise, a empresa quer demitir”, lamenta Bezerra. Em sua opinião, esse período em que os funcionários ficam em casa em licença, recebendo sem trabalhar, poderia ser utilizado pela montadora para dar cursos de qualificação para que todos voltassem mais preparados quando o mercado melhorar. “A empresa tem centros de treinamento e poderia aproveitar essa ociosidade que tem hoje na produção para reciclar a mão de obra.”
“Teremos de mudar toda nossa vida”
Na terça-feira da semana passada, o temido telegrama da Mercedes-Benz chegou à casa de Elaine Cristina Feitosa. O aviso pede para ela comparecer à fábrica na sexta-feira para fazer a rescisão de contrato.
Elaine conta que se desesperou ao pensar nas parcelas que ainda faltam para pagar do financiamento do apartamento adquirido com o marido, Anselmo Francisco do Prado, também funcionário da montadora.
“Só pagamos dois anos de prestação de um financiamento de 30 anos”, diz ela, acrescentando que, sem sua parte para compor a renda, não vai dar para manter as parcelas do empréstimo bancário para a compra do imóvel. “Talvez a gente tenha de vender”, lamenta o marido, porque para bancar a conta será necessário mais da metade do seu salário.
Elaine tem 33 anos e trabalha na Mercedes há sete, no setor de pré-montagem. Está em licença remunerada desde fevereiro, com outros 1,4 mil trabalhadores.
Nesse período, dispensou os serviços de uma pessoa que tomava conta dos filhos de 1 e 3 anos e conseguiu economizar um pouco.
Prado também tem 33 anos e trabalha na área de logística há nove anos. “Tenho medo de perder meu emprego também, pois a empresa só fala de excedente, excedente”, diz. “Se isso ocorrer, teremos de mudar toda nossa vida.”
Bicos
Quem também está preocupado com o financiamento do apartamento adquirido em Santo André, no Grande ABC, é Ed Carlos, de 33 anos, que está há sete na Mercedes. Ele trabalha na área de pintura e recebeu o telegrama de demissão. A prestação do imóvel é de R$ 1,2 mil por mês. “Não sei o que fazer.” A mulher não trabalha para cuidar do filho de 5 anos, que é especial. Ele está em licença remunerada desde fevereiro e, nesse período, conseguiu fazer alguns bicos.
Luciano da Silva, de 39 anos, é outro funcionário da pintura que recebeu a carta há uma semana. O setor será transferido para a fábrica da Mercedes em Juiz de Fora (MG). “Graças a Deus que minha mulher tem emprego, de analista de sistema”, diz Silva, que torce para que as negociações da montadora com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC deem bons resultados “para que todos consigam se manter na empresa”.
Deficientes não foram poupados
Mudo, ele explica por meio de gestos, traduzidos por um companheiro, que mora na zona leste de São Paulo com o pai, aposentado, e um irmão de 38 anos que trabalhava na área de construção civil, mas está desempregado há um ano.
É Frasson quem banca a maior parte dos gastos da família. Nos últimos seis meses, ele esperou que a empresa o chamasse de volta e agora conta com as negociações entre o sindicato e a Mercedes para que a demissão seja revertida. O diretor do sindicato, Sebastião Ismael de Souza, representante na empresa do grupo de deficientes, afirma que, nos últimos três anos, a Mercedes demitiu mais de 40 trabalhadores dessa equipe. “A empresa não cumpre a cota”, afirma.
O jeito foi morar com a mãe
Na semana passada, a empresa deu novo período de licença remunerada para a maioria dos mais de 9 mil funcionários, sem data para volta. No ano passado, após a mulher ficar desempregada, o casal e o filho de 2 anos foram morar com a mãe dele em Santo André. “Só com o meu salário não dava mais para pagar o aluguel da casa e as outras despesas.”
Com a mãe já estavam a irmã de Souza, com o marido e a filha. “Fico preocupado, pois tenho de ajudar a família e, se perder esse emprego, vai ser muito difícil arrumar outro.”
Funcionário do setor de pintura e com problemas de audição, ele compõe o grupo de trabalhadores da cota de deficientes da Mercedes. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)