O Estado de S. Paulo
A projetada saída do Reino Unido da União Europeia (UE) não altera substancialmente as condições em que se darão as negociações do acordo de livrecomércio entre o Mercosul e a UE, embora certamente introduza alguns complicadores e presumíveis adiamentos. A UE – cuja prioridade já eram os entendimentos com os EUA – terá de definir um novo regime para o Reino Unido (na sua dimensão atual ou outra que surja da opção escocesa de manter seus laços com Bruxelas).
Em que pese esse quadro, o Mercosul (coletivamente ou por país) continuará preocupado em afetar o mínimo possível sua base industrial pouco competitiva e a UE permanecerá aferrada à defesa de seu mercado agrícola, fortemente protegido pelas regras e disciplinas da Política Agrícola Comum (PAC). Para alcançar um acordo cada um dos atores teria de superar persistentes questões estruturais:
No Brasil, veiculamse frequentes críticas à incapacidade dos sucessivos governos de abrir novos mercados. O que desconsidera aspectos importantes de nossos limites negociais, impostos pela falta de competitividade da indústria nacional. Ao setor têxtil debitase boa parte do fracasso do acordo com a Índia; ao petroquímico, os inconclusos entendimentos com Estados árabes do Golfo. Os setores siderúrgico, eletroeletrônico, de informática e de bens de capital parecem pouco propensos a aceitar uma menor proteção tarifária. As montadoras receiam a concorrência de suas matrizes. O famigerado custo Brasil, a carência inovadora e a retração da atividade econômica no País nos últimos anos certamente não contribuíram para novos investimentos, nem para incrementar nossa capacidade de enfrentar a competição com os importados, em muitos casos de melhor qualidade, quase sempre de menor preço e eventualmente dotados de condições mais favoráveis de financiamento.
No Mercosul, o Brasil é o país com a estrutura produtiva mais diversificada, o que faz nossos interesses nem sempre serem coincidentes dentro do grupo. Alguns parceiros poderiam legitimamente ser mais receptivos a demandas europeias de inclusão de manufaturados na pauta. Essa postura não avançou, no passado recente, porque a Argentina, no período Kirchner, adotou uma atitude assumidamente protecionista (o que evitou que pagássemos o preço político de algumas recusas). Hoje a Argentina busca uma reaproximação com o mercado mundial e restabelecer vínculos de confiança com as instituições financeiras internacionais, como forma de atrair investimentos.
Com isso as dificuldades negociais brasileiras tenderão a tornarse mais ostensivas. Além disso, existe o fator Venezuela. Mesmo que esse país não participe das negociações, os acordos subscritos terão, a rigor, de contar com seu beneplácito para ser adotados por consenso pelo Mercosul, como determina o Tratado de Assunção. O mesmo valeria para eventuais acordos individuais, por país, celebrados com base numa propalada reforma da Decisão 32, que estabelece o compromisso de “negociar de forma conjunta acordos de natureza comercial”, como corresponde a uma união aduaneira – condição que, ao longo do tempo, vem sendo acusada de ter decrescente funcionalidade para os interesses nacionais. Verificase assim uma perceptível tensão entre nosso desejo de preservar condições preferenciais de mercado para nossos produtos industriais na região e nossa propalada busca de novos mercados externos, alegadamente comprometida pelos constrangimentos da união aduaneira. Restaria a possibilidade de buscar entendimentos em temas que ainda não são da competência exclusiva do Mercosul (não o são justamente por sua sensibilidade, como compra governamentais e investimentos).
A coesão negocial do Mercosul seria mais seriamente testada se a UE adotasse atitude construtiva (o que é obstaculizado pela ação de 13 de seus 28 membros, avessos à inclusão de itens como carne e etanol e contrários a qualquer debilitamento de sua parafernália protecionista, como os famigerados “direitos variáveis”, que blindam a PAC). Essa defesa de sua onerosa atividade agrícola tenderá a tornar inviável um tradeoff, seja porque o mercado de manufaturados do Mercosul não será atraente o suficiente para justificar o desmantelamento do protecionismo agrícola (um dos pilares do projeto europeu original), seja porque concessões importantes nessa área comprometeriam, por simetria, a posição negociadora da UE nos megaacordos em curso com os EUA, por exemplo. Além disso, os investimentos industriais europeus no Brasil já lhes permitem desfrutar posição privilegiada de acesso, como no caso do setor automobilístico – cuja presença no Brasil decorre justamente da alta tarifa de importação imposta a terceiros (da ordem de 35%).
Eliminála poderia acarretar o risco de desinvestimentos no setor, nas atuais condições desfavoráveis de funcionamento da economia.
A saída do Reino Unido tenderá a fortalecer os setores protecionistas dentro da UE, não constituindo assim fator de estímulo ao acordo com o Mercosul. De toda forma, seu peso não era suficiente para determinar os rumos da negociação. Sua influência será mais no sentido de desviar momentaneamente a atenção da UE de negociações comerciais externas.
Em suma, a ênfase na rápida conclusão de um acordo de livrecomércio, com todo o seu complexo cardápio de disciplinas adicionais (barreiras técnicas, comércio de serviços, compras governamentais, procedimentos alfandegários, propriedade intelectual), pode apresentar riscos políticos indesejáveis caso não se alcance um improvável êxito no curto prazo. A ausência de acordo sofreria críticas não só por se tratar de um renovado fracasso, mas também por significar manter o Brasil à margem dos grandes arranjos econômicos regionais. O que seria uma importante reversão de expectativas e – nessa lógica – usado pelo “antigo regime” para “legitimar” seu discurso em favor da opção terceiromundista pelo eixo SulSul. (O Estado de S. Paulo/RenatoL.R.Marques)