A guerra contra o atual conceito de automóvel

O Estado de S. Paulo/Blos Primeira Classe

 

Há cerca de três anos, em um jantar em Detroit (EUA), durante a semana do salão automotivo da cidade, um colega disse uma frase foi alvo de bullying por parte dos outros presentes na mesa, inclusive eu. Disse ele algo mais ou menos assim: “Eu tenho um sonho. Um dia o carro será o que ele foi criado para ser”.

 

Lembro-me que rimos muito. E, já que estávamos nos Estados Unidos, fizemos uma associação com o discurso “I have a dream” (eu tenho um sonho), de Martin Luther King.

 

Alguns anos se passaram e, quem diria, o sonho de nosso colega parece estar prestes a se tornar realidade. O carro foi criado para ser, afinal de contas, um meio de transporte. Mas, desde seus primórdios, é muito mais que isso. É alvo de desejo, paixão. É sinônimo de status. É objeto de prazer.

 

Porém, o mundo atual parece ter cada vez menos espaço para eles. Recentes medidas no Brasil e no mundo corroboram esta tese. E a tecnologia parece evoluir para deixar o automóvel cada vez mais sem graça.

 

Na verdade, tenho a impressão que está se desenrolando uma guerra contra o atual conceito de automóvel. Em São Paulo, são muitos os estímulos para deixar o veículo em casa. Até reduzir a velocidade da pista local das Marginais para 50 km/h.

 

Em Londres, uma lei pretende proibir os superesportivos de rodarem na cidade. Em 2035, a maioria dos carros do mundo deverá ser autônoma.

 

Eu entendo a necessidade de algumas destas medidas. Porém, sem o barulho, a velocidade e o prazer de dirigir, para onde vai a paixão pelo automóvel? Tenho a impressão de que, em breve, os entusiastas só poderão desfrutar de seus objetos de prazer e admiração nas pistas, ou observá-los no museu.

 

Os poucos entusiastas, já que as novas gerações não saberá o que é um automóvel capaz de despertar paixão.

 

Veja, abaixo, alguns dos alicerces da guerra contra o conceito atual de carro.

 

Barulho

 

Recentemente eu fiz uma reportagem sobre os modelos remanescentes com motor V8 aspirado na Alemanha. Com o advento do turbo, os propulsores ficaram mais silenciosos. Eles não soam mais como os de aspiração natural, bem mais instigantes (leia mais aqui).

 

Além disso, de acordo com a sistemistas Bosch, em dez anos todos os carros deverão ser híbridos ou elétricos. O silêncio, assim, aumentará ainda mais. O motor elétrico faz barulho, no máximo, de enceradeira.

 

Em Londres, o projeto da nova lei do silêncio prevê impedir carros com motores barulhentos – como os V8, V10 e V12 dos superesportivos – de acelerarem na cidade. Se o projeto for aprovado, essa atitude se tornará um crime. E, na verdade, os superesportivos estarão proibidos de rodar na capital inglesa, porque é preciso acelerar para andar, certo? Você pode conferir mais detalhes aqui.

 

Eu entendo que é necessário reduzir o consumo de combustível e as emissões de poluentes. E também que as leis do silêncio são muito bem vindas. Mas precisa ser assim tão radical, a ponto de proibir os supercarros em uma das cidades que ainda está entre as mais legais do mundo?

 

Prazer de dirigir

 

A conectividade, uma das diretrizes da tecnologia embarcada, promete deixar a experiência a bordo mais legal. Porém, ela é também determinante para a consolidação do carro autônomo, que vai diminuir a importância do condutor, ou talvez fazer até o papel do motorista desaparecer completamente (leia mais aqui).

 

Nesta semana, aliás, o Jornal do Carro preparou um especial sobre as possibilidades da conectividade para a mobilidade. Você pode conferir tanto no site quanto na edição impressa de 29 de julho.

 

Até 2035, a expectativa é que a maioria dos carros seja autônoma. Será como um ônibus, só que particular. O motorista poderá guiar o veículo – acredito que a legislação até mesmo obrigará a presença do condutor, para assumir o volante em caso de emergência. Porém, ele vai querer? Ou vai preferir ficar mexendo no celular? Será que existirão entusiastas do automóvel nas novas gerações?

 

O objetivo do carro autônomo, segundo seus defensores, é aprimorar a segurança, já que a maioria dos acidentes é causada por falhas humanas. Mas, se o computador de sua casa tem problemas o tempo todo, será que dá para confiar nesse tipo de carro? Sei não, heim.

 

Redução da velocidade

 

Pode não parecer, mas aos poucos os carros estão ficando mais lentos. O downsizing permite ter motores menores com a potência de maiores. No entanto, justamente por causa da legislação sobre emissões, cada vez mais rigorosa, nem sempre é possível usar todo o potencial do propulsor.

 

Quer um exemplo? A VW Jetta Variant tinha 170 cv; sua sucessora, a Golf Variant, tem 150 cv. O desempenho é o mesmo? Talvez a Golf até seja mais esperta na cidade, por ser turbo e, portanto, ter bom torque em baixa rotação. Mas será que, nas rodovias, ela vai tão bem quanto sua antecessora?

 

Aproximando um pouco esse fenômeno de nossa realidade, recentemente houve redução de velocidade nas Marginais Pinheiros e Tietê. Eu ainda não tenho uma opinião totalmente formada sobre os 70 km/h da pista expressa.

 

Só acho que, se é para reduzir os atropelamentos, o caminho não é esse. Eu, por exemplo, percorro cerca de 60 km por dia, nas duas marginais. Em três meses, os únicos pedestres – e que fique claro que a via não é para circulação de pedestres – que vi foram vendedores ambulantes de refrigerantes e doces. E apenas durante congestionamentos.

 

Mas, enfim, acho que, no caso da pista expressa, os 70 km/h de máxima são aceitáveis. Não comprometem muito o tempo de deslocamento. Essa é minha impressão até agora. E, se isso conseguir reduzir o número de acidentes e mortes, se essa medida for suficiente, será perfeita – se bem que seria melhor construir passarelas para pedestres, né? Fica a dica, perfeito.

 

Já os 50 km/h na pista local são ridículos, vai. Avenidas nas imediações têm pedestres – com faixas, indicando que eles podem passar, algo que não ocorre nas Marginais -, pontos de ônibus, faróis e velocidade máxima de 60 km/h. Alguém explica, então, por que uma via de trânsito rápido, sem farol, é limitada a 50 km/h?

 

Na tarde desta quinta-feira, chegaram a circular notícias de que a prefeitura pretendia chegar ao cúmulo de fechar as pistas expressas das marginais entre 00h e 6h, “para aumentar a segurança”. A CET, porém, veio a público informar que esta medida não será tomada. Ufa! (O Estado de S. Paulo/Blos Primeira Classe/Rafaela Borges)