Montadoras em greve pressionam indústria dos EUA

O Estado de S. Paulo

 

Stanton, Tennessee, parece um lugar de uma era passada. A prefeitura lembra pitorescamente um mercado de alimentos dos anos 60. Ao lado há uma fábrica de conservas, onde os moradores usam fogões comunitários para fazer sopas e compotas de pêssego para o inverno. Ao longo de grande parte de sua história, a principal fonte de renda de Stanton foi a cultura do algodão, que se degradou tanto que muitos pequenos proprietários partiram.

 

Mas, em meio aos campos de algodão, algo notável toma forma. A Ford, uma das três grandes fabricantes de automóveis dos Estados Unidos, está construindo o maior complexo industrial de sua história, incluindo uma fábrica de veículos elétricos (EVs), uma fábrica de baterias e uma base para seus fornecedores, com um investimento de US$ 5,6 bilhões. Um ano após o início da construção, milhares de hectares foram cobertos de concreto e aço.

 

Peões de obra trajando uniformes fosforescentes lotam o Suga’s Diner, o único restaurante na localidade de 400 habitantes, para almoçar frango frito e bagre. Quando a Ford anunciou o projeto, em 2021, o restaurante colocou um cartaz lamentando uma escassez de frango. Agora, um cartaz de oferta de emprego denota uma escassez de mão de obra. “Nós não estamos dando conta”, diz Lesa “Suga” Tard, a proprietária. A história é parecida em De Soto, Kansas. A atividade industrial da cidade foi cortada abruptamente décadas atrás quando uma fábrica de munições teve as atividades suspensas. Em abril, a Panasonic começou a construir uma fábrica de baterias de US$ 4 bilhões por lá, o maior investimento já realizado na história do Estado.

 

Dirigindo sua picape até o terreno de 3,6 mil hectares, o prefeito da cidade, Rick Walker, aponta para escavadeiras transformando uma estrada vicinal em uma rodovia de quatro pistas, conta quantos guindastes (nove) estão erguendo o segundo andar da fábrica e rasga elogios a uma gigantesca fazenda de energia solar que será construída nas imediações.

 

Uma viagem de carro, de vários dias, ao longo do “corredor automotivo” dos EUA, que se estende dos Grandes Lagos até o Golfo do México, conta a história da indústria em tempo real. O país está tomado por um boom industrial em diversos setores, de fábricas de semicondutores a fazendas solares.

 

No fim de 2022, empresas anunciaram US$ 210 bilhões (por volta de R$ 1,07 trilhão) em investimentos em fábricas de carros elétricos e baterias nos EUA, em comparação a US$ 51 bilhões (R$ 261,7 bilhões) no fim de 2020, de acordo com o agregador de dados Atlas Public Policy. Isso já alimenta um boom nos gastos nas construções, que dobraram desde o fim de 2021.

 

Renascimento

 

Vários fatores explicam o que alguns vêm qualificando como o renascimento da manufatura americana. O presidente Joe Biden alega que grande parte dessa bonança é resultado de incentivos financeiros previstos pela Lei de Chips e Ciência e pela Lei de Redução da Inflação (LRI), duas de suas políticas emblemáticas.

 

Há um medo, no caso de fabricantes de carros como a Ford, que decidiu construir em Stanton antes da aprovação da LRI, de que, se as empresas não aproveitarem a iniciativa pela eletrificação, elas perderão domínio no mercado automobilístico americano para a Tesla, a principal fabricante de carros elétricos.

 

Dado o grau de apego dos americanos que não habitam algumas poucas cidades costeiras aos seus bebedores de gasolina, o aumento nas fábricas de carros elétricos e baterias pode parecer um elefante branco em gestação. Seja qual for sua lógica comercial, as fábricas já desempenham um papel em debates nacionais.

 

As unidades de EVs e baterias são pontos importantes de contenção em uma greve contra as três grandes fabricantes de veículos de Detroit, Chrysler (que pertence em parte à Stellantis, cujo maior acionista é proprietário de parte da empresa-mãe da Economist), Ford e General Motors (GM). A Ford pausou a construção de uma fábrica de baterias em Marshall, Michigan, até que a disputa laboral seja resolvida. Biden e seu antecessor e provável rival na próxima eleição presidencial, Donald Trump, visitaram Michigan na semana passada para dar apoio às greves.

 

O sindicato United Auto Workers (UAW), por trás da greve, preocupa-se com a possibilidade de as novas fábricas serem difíceis de sindicalizar. De fato, há pouca evidência de uma migração total de fabricantes de carros do norte sindicalizado para o sul menos amigável a sindicatos. James Rubenstein, da Universidade de Miami, que estuda a geografia da indústria em Oxford, Ohio, nota que fabricantes de automóveis não americanos têm construído fábricas no sul há décadas.

 

E, agora, os antigos Estados fabricantes de carros estão vendo tanta atividade quanto os novos. A primeira fábrica contígua da GM de carros elétricos e baterias é em Detroit, próxima às dilapidadas e grafitadas fábricas que restaram do apogeu da cidade. O projeto da Ford em Marshall fica a duas horas de carro de lá. “Todos estão conseguindo uma fatia bem farta da generosidade, tanto ao norte quanto ao sul do Rio Ohio” afirma Rubenstein.

 

Os megaprojetos, portanto, poderão não reconfigurar a geografia industrial em larga escala dos EUA. Mas, no nível local, seus impactos são extraordinários. Eles brotam em lugares esquecidos, que por anos aguardaram frustrados a chegada do renascimento da manufatura. Esses lugares têm várias coisas em comum.

 

Primeiro, eles reservaram espaços enormes de terras improdutivas para o desenvolvimento industrial. O prefeito de Stanton, Allan Sterbinsky, afirma que o município reservou 1,6 mil hectares para esse propósito décadas atrás; o governo do Estado até montou um escritório no Japão para promover os espaços.

 

A Toyota, uma gigante japonesa na fabricação de automóveis, fez algumas aproximações exploratórias. Mas foi preciso a Ford para garantir que as ambições da cidade pudessem enfim se realizar, afirma ele.

 

Carona compartilhada

 

Uma segunda característica comum é a disponibilidade do trabalho. Apesar de muitas das novas fábricas ficarem em remansos rurais, elas têm acesso a grandes bolsões de trabalhadores nas proximidades. Quando forem ativadas, as operações da Ford deverão empregar 6 mil funcionários, cerca de 15 vezes mais que a diminuta população de Stanton.

 

Com o tempo, uma escola técnica local treinará futuros trabalhadores. Por agora, será muito mais fácil encontrá-los em Memphis, a cerca de 40 minutos de carro. De Soto tem 1,5 milhão de possíveis trabalhadores em um raio de até 30 minutos de carro, que inclui Kansas City, portanto a Panasonic não deverá ter problema em contratar 4 mil pessoas, afirma Walker.

 

As novas fábricas irão, contudo, contribuir para incrementar regionalizações na indústria automobilística americana – a terceira característica em comum. Isso é útil para minimizar o custo do transporte das pesadas baterias. Ford terá uma fábrica da SK On, sua parceira sul-coreana em fabricação de baterias, no complexo industrial de Stanton.

 

Também terá fornecedores de peças automotivas, como a Magna, na vizinhança próxima. Ao contrário da Gigafactory, em Nevada, onde a Panasonic estabeleceu parceria com a Tesla, a fábrica da empresa japonesa em De Soto fornecerá para mais clientes e fabricará vários tipos de baterias de lítio.

 

A dependência dos projetos em relação a fontes abundantes de energia limpa, enquanto isso, os torna simbióticos à proliferação de usinas eólicas e solares nas proximidades. A linha do horizonte nas pradarias de Kansas está repleta de turbinas que geram quase metade da eletricidade consumida no Estado.

 

A Autoridade do Vale do Tennessee, uma agência multiestadual, está investindo pesadamente em energia solar e outras formas de geração de eletricidade para atender a uma demanda crescente no sul em razão de projetos como o da Ford.

 

Mas alguns ossos grandes continuam engasgados. Um é o custo e a eficácia dos incentivos do governo para promover o boom de investimento. A Ford e a SK, que também estão construindo duas fábricas de baterias no Kentucky, obtiveram condicionalmente um empréstimo de US$ 9,2 bilhões (R$ 47,51 bilhões) do Departamento de Energia.

 

As empresas também esperam se qualificar para um crédito tributário para produção de baterias previsto na LRI. A Panasonic, relata-se, receberá US$ 830 milhões (R$ 4,2 bilhões) em créditos tributários financiados pelo Estado, assim como um possível apoio da LRI.

 

Um novo estudo de Ahmed Medhi e Tom Moerenhout, do Centro de Políticas de Energia Global, da Universidade Columbia, calcula que os créditos fiscais previstos na LRI geram economia para mais de 30% dos fabricantes de baterias, o que ajuda a contornar a diferença de custo de produção de baterias entre EUA e China. Contudo, seu sucesso em estimular investimentos pode aumentar custos fiscais mais do que o projetado. E também ocasionam “guerras de subsídios” com a União Europeia.

 

Incentivos

 

Apesar de poderem impulsionar cidades fabris, os subsídios implicam custo para os contribuintes e a longo prazo podem embotar os incentivos da indústria para inovar. De Soto teve de oferecer isenções fiscais e outros incentivos para atrair a Panasonic, que durante muitos meses manteve secreta sua identidade até das autoridades locais, para não alertar competidores.

 

Outra preocupação é o impacto socioambiental dos investimentos. As empresas querem construir os projetos do zero em lugares mais ermos, sem desenvolvimento anterior, onde a demanda laboral não é tão feroz. Mas isso pode instigar hostilidade de habitantes locais que resistem em transformar campos verdejantes em fábricas e se preocupam sobre poluição e uso excessivo de recursos locais mesmo que a serviço de uma “revolução verde”.

 

Alguns também temem que o desenvolvimento industrial destruirá o caráter tradicional de suas cidades ou aumentará o custo de vida. Num café em De

 

Soto, a garçonete Kira Horn descreveu como, à noite, a luz dos guindastes, que trabalham 24 horas, fazem o lugar parecer “uma cidade”. Apesar de pessoas como o chefe dela, que também trabalha como corretor de imóveis, já desfrutarem do boom empresarial e imobiliário, alguns de seus amigos jovens preocupam-se com a possibilidade de esse aquecimento não lhes permitir comprar casas.

 

E então há o desafio sindical. Kansas e Tennessee são Estados inamistosos aos sindicatos. Em contraste à GM, que tem uma fábrica sindicalizada perto de Nashville, Tennessee, não será requerido automaticamente dos trabalhadores da Ford em Stanton juntar-se ao UAW. Isso tem causado fricção. Em junho, o presidente do sindicato, Shawn Fain, criticou o governo Biden por emprestar dinheiro para o projeto Stanton sem antes acertar requisições salariais.

 

A Ford ganhou um respiro em 22 de setembro, quando o UAW decidiu expandir sua greve apenas às fábricas da GM e da Stellantis, afirmando que havia progredido em negociações com a Ford. Mas a fabricante de carros relutará em ceder muito em Stanton. COMPETIÇÃO. Erik Gordon, da Escola Ross de Administração, da Universidade de Michigan, afirma que a revitalização da manufatura americana dependerá de automação e trabalho. Os carros elétricos da fabricante de Detroit não serão competitivos se os custos laborais forem altos demais, afirma ele.

 

Para a força empreendedora dos EUA ser reconstruída e lugares anteriormente esquecidos serem reavivados, conforme esperam os defensores dos projetos locais, essas dificuldades terão de ser superadas. E a opção de Biden pelos subsídios poderá trazer consigo custos econômicos para o país como um todo. Mas, apesar de o projeto estar no início, o prospecto para Stanton parece encorajador. A presença da cadeia de fornecimento da Ford ao lado do chão da fábrica deverá atrair mais pequenos negócios.

 

Projeções do prefeito mostram que, como resultado do investimento da Ford, a população da cidade deverá crescer 20 vezes em pouco mais de uma década. Sterbinsky já está garantindo investimentos em estrutura hídrica, saneamento e outras áreas para dar suporte ao crescimento. Ele percorreu Estados do sul para aprender como transformar lugares adormecidos em polos criativos, que atraem empreendedores. Os genuínos tesouros sulistas de Stanton, como a fábrica de conservas e o Suga’s Diner, são um bom ponto de partida. (O Estado de S. Paulo/Tradução de Guilherme Russo)