O Estado de S. Paulo
Em uma ação inédita no setor, as principais montadoras de veículos do País se uniram contra a prorrogação de incentivos fiscais às fábricas instaladas no Nordeste e Centro-Oeste. O principal alvo é a Stellantis, dona das marcas Fiat, Peugeot, Citroën e Jeep – esta última com fábrica em Goiana (PE), inaugurada em 2015.
Com isso, a Stellantis recebe cerca de R$ 5 bilhões por ano em créditos de impostos, benefício que faz com que os modelos da Jeep produzidos lá fiquem até 20% mais baratos para a fabricante.
Criado no fim dos anos 90 e previsto para durar até 2010, o benefício já foi prorrogado duas vezes, uma delas para incluir a Jeep. Sua vigência termina em 2025, mas nas últimas semanas teve início um movimento para estendê-la até 2032 por meio de adendo ao texto da reforma tributária. A proposta foi rejeitada na Câmara por apenas um voto, mas deve voltar ao texto, com apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a votação no Senado.
Além da Stellantis, o programa beneficia a fabricante de autopeças Moura, também de Pernambuco. Outras duas montadoras, a Caoa Chery e a HPE Mitsubishi, ambas instaladas em Goiás, passaram a ter incentivos em 2020 quando o Centro-Oeste foi incluído no regime especial, porém em condições bem mais modestas.
No centro do embate entre montadoras, a fábrica da Jeep em Goiana é a mais moderna do grupo no mundo, e hoje é comandada pela engenheira Juliana Coelho. Pernambucana de 31 anos, ela é a primeira mulher a ocupar esse cargo no grupo na América Latina.
Detentora de 31,5% das vendas de automóveis e comerciais leves do País, a Stellantis produz modelos de maior valor agregado, como utilitários-esportivos (SUVs) e picapes, na fábrica de Goiana, onde trabalham 5,6 mil pessoas. Um SUV como o Jeep Compass recolhe 2% em IPI e ICMS, enquanto modelos da mesma categoria feitos no Sul e Sudeste pagam 23%, informa um relatório que as concorrentes estão apresentando ao governo e a parlamentares para convencê-los a não prorrogar os incentivos.
Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU)para avaliar os resultados da concessão de benefícios tributários dos regimes automotivos indica que, desde 2010, os valores acumulados pelas montadoras do Nordeste passam de R$ 50 bilhões, ao mesmo tempo que “entregam pouco de desenvolvimento regional aos territórios beneficiados”.
O TCU concluiu ainda que as empresas não promoveram a aglomeração industrial ao redor das fábricas, e que a maior parte dos insumos continua vindo de fornecedores do Sul e do Sudeste. Como resultado, cada emprego gerado na fábrica da Jeep em Pernambuco equivale à renúncia de R$ 34,4 mil mensais, cita o estudo.
Guerra Fiscal
Fernando Trujillo, consultor da S&P Global Brasil, vê os incentivos como “a famosa guerra fiscal em que poucos ganham e muitos saem perdendo”. Em sua opinião, o benefício fiscal é válido para desenvolver uma região ou Estado, mas com prazo de validade limitado para não impactar a competitividade entre regiões e empresas. “Uma vez que o benefício se estende ciclo após ciclo, não traz ganho para a maioria dos stakeholders, dando vantagem competitiva para poucos players do mercado.”
A Stellantis rebate e diz que o regime especial é um mecanismo para compensar o gap logístico e competitivo na região, que ainda não foi equacionado. “Hoje, a operação instalada em uma região sem tradição industrial no setor continua sendo punida pela baixa formação da cadeia de fornecedores e pela distância em relação aos maiores centros consumidores”, afirmou o grupo, em nota, acrescentando que, para cada real de incentivo, retornam outros R$ 5 de arrecadação para o Estado e o governo federal.
“Os incentivos já cumpriram a função de desenvolvimento regional, de levar as indústrias a se instalarem lá, e nesse momento não deve haver incentivo exclusivo no formato como está hoje”, diz Ricardo Bastos, diretor de Relações Governamentais da GWM, grupo chinês recém-instalado em Iracemápolis (SP).
Embora atuem de forma independente, dirigentes da General Motors, Toyota e Volkswagen estiveram com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no fim de julho, e os incentivos foram discutidos nos encontros. Cinco fabricantes ouvidas pelo Estadão confirmaram que estão agindo para barrar a prorrogação dos incentivos. Para duas delas, a decisão pode influenciar diretamente futuras decisões de investimentos, em um momento em que a transição energética exigirá elevados aportes das companhias.
Procurada, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) disse que não comenta esse tipo de assunto por se tratar de tema específico que não envolve todas as associadas.
“Os incentivos já cumpriram a função de desenvolvimento regional, de levar as indústrias a se instalarem lá, e nesse momento não deve haver incentivo exclusivo no formato como está hoje”, Ricardo Bastos Diretor da GWM (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)