Desmanche legal, rentável e atento ao ambiente

O Estado de S. Paulo

 

Startups modernizam o desmonte de carros, com peças rastreáveis e práticas ambientais que trazem maior rentabilidade a empresas Custos No Japão, ao comprar um carro zero o consumidor paga uma taxa para custear a reciclagem

 

Mercado antigo no Brasil, a desmontagem de veículos, atividade que sempre transitou entre a formalidade e a ilegalidade, ganha nova roupagem no País. Com a entrada cada vez maior de startups no negócio, o processo de descarte de carros em fim da vida útil tem sido modernizado com diferentes tecnologias, uso de sistemas de rastreabilidade de peças e práticas ambientais.

 

Além de reduzir o passivo de carros sem condições de trafegar, as startups apostam na maior rentabilidade que pode ser obtida com a separação individual e a destinação adequada de peças, principalmente das que equipam carros mais novos, como ar-condicionado, airbag e itens eletrônicos. Também estão atentas ao futuro, quando a frota de eletrificados for maior e exigir outro formato de desmanche.

 

No modelo atual, a maioria das recicladoras registradas retira itens como líquidos, baterias, catalisadores, pneus, estofamento e alguns plásticos e o resto vai para as usinas triturarem. Depois as matérias-primas são separadas. O aço fica na siderúrgica para ser derretido e voltar ao mercado. Plásticos e borrachas moídos são vendidos para indústrias. No mercado informal, muitas peças ainda vão para aterros.

 

“Acreditamos que muitas partes podem ser reaproveitadas de forma diferente e participar da economia circular para que possamos sair do prensar e triturar o carro quase inteiro”, diz Wladi Freitas de Souza, sócio-fundador da startup Green Way for Automotive (GWA).

 

A proposta da startup de Gravataí (RS), que opera parcialmente em fase de testes, é evoluir o processo de desmanche, separar a maior parte dos itens do veículo e vendê-los a fornecedores de montadoras para que voltem à produção de carros.

 

Estimativas das empresas formais de reciclagem indicam que, no Brasil, cerca de 500 mil carros são reciclados anualmente, resultando em faturamento de cerca de R$ 4 bilhões em venda de peças e transações de veículos descartados.

 

Por outro lado, calcula-se um passivo de pelo menos 2 milhões de veículos (automóveis, caminhões e motos) estocados em pátios de órgãos de trânsito, seguradoras ou áreas privadas. Muitos passam por corrosão, oxidação e vazamento de líquidos que contaminam o solo e lençóis freáticos.

 

“Se a gente aproveitasse o potencial de reciclagem como fazem Estados Unidos, Japão e países da Europa, esse mercado seria muito maior no Brasil”, afirma Arthur Rufino.

 

Ele criou a Octa, startup de São Paulo que faz a intermediação entre empresas que têm carros descartados com recicladoras e frotistas que podem usar as peças aproveitáveis. Nos últimos sete meses, a Octa intermediou cerca de R$ 2 milhões em transações.

 

A Gerdau, que adquire boa parte dos materiais à venda, reciclou, de 2018 a 2021, mais de 40 mil toneladas de sucata veicular, o equivalente a cerca de 50 mil veículos. Segundo a siderúrgica, após a trituração, todo o material é separado, e os metais não ferrosos são vendidos ao mercado e parte dos não metálicos é revendida.

 

PARCERIA. Souza conta que a GWA foi escolhida pela Toyota do Brasil para uma parceria em que a montadora transfere tecnologias de desmontagem e reciclagem usadas pela matriz do grupo no Japão, que tem recicladora própria.

 

“As empresas estão olhando de maneira geral para a economia circular, e o fato de conseguirmos fazer a recuperação de produtos em final de vida é uma forma de fazer parte dessa economia”, diz Viviane Mansi, diretora de comunicação da Toyota na América Latina.

 

No Japão, ao comprar um carro zero o consumidor paga uma taxa equivalente no Brasil a R$ 450 destinada a custear a reciclagem. Lá, a vida útil dos automóveis é de cerca de 15 anos. No Brasil, segundo os recicladores, os carros descartados têm em média 30 anos.

 

Souza desenvolveu tecnologia inédita para descontaminação de combustíveis e óleos. “Criamos um equipamento, o Carfluid, que usa automação industrial para furar o tanque, recolher o óleo por sucção e colocar um estancamento”, diz. “Tudo é controlado por computador, sem que o operador tenha de ficar embaixo do carro, exposto a riscos e contaminações.” No mercado, o processo é quase todo manual.

 

A projeção da empresa é de, até 2030, descontaminar e reciclar 100 mil toneladas de resíduos automotivos e reaproveitar até 85% das partes e peças dos veículos. Até agora foram investidos R$ 750 mil no projeto, e mais R$ 1 milhão a R$ 1,5 milhão serão gastos neste e no próximo ano.

 

A GWA vai se mudar para uma área maior onde quer criar um hub de inovação para abrigar outras startups que atuam nessa área e um marketplace de peças usadas.

 

Ajuda do Google

 

Selecionada recentemente para receber aporte do programa Google for Startups Brasil, a Octa nasceu no fim de 2020 e tem 100 frotistas e empresas de desmontagem em sua base de clientes. Em maio de 2021 recebeu aporte anjo de R$ 1 milhão e está prestes a concluir nova rodada de aportes.

 

Segundo ele, as empresas começam a ver o negócio de reciclagem “de uma forma verde, pois a cada veículo desmontado com o propósito de uso de peças se evita a emissão de milhares de toneladas de CO2 por conta da não produção de outra peça ou do aproveitamento do material reciclável”.

 

Arthur informa que o desmanche de veículos é a 16.ª maior atividade econômica dos EUA e, em sua opinião, o Brasil tem chances de ampliar essa atividade. Ele avalia que o mercado paralelo no Brasil ainda é maior do que o legalizado.

 

Criada em 2011, a Ecosystem presta serviços para siderúrgicas, seguradoras, concessionárias e montadoras. Por exemplo, quando a siderúrgica adquire lotes de veículos em leilão, a Ecosystem faz a descontaminação, leva a sucata para centros de prensagem e depois entrega para a usina triturar.

 

Gilmar Adriano de Oliveira, fundador da empresa com sede em Novo Hamburgo (RS), conta que já teve oficina de funilaria e decidiu fazer um plano de negócio para dar destino correto às sucatas. “Consegui um sócio investidor e iniciei esse trabalho de receber resíduos automotivos e transformar em matéria-prima.”

 

A Ecosystem tem entre seus equipamentos um triturador de plásticos. Os polímeros são revendidos a fabricantes de baldes e cepas de vassouras. Outra atividade da empresa é detonar airbags de carros de seguradoras e montadoras antes de irem para a reciclagem.

 

A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea) tenta, há mais de 20 anos, criar, junto com o governo, um programa de renovação de frota que consistiria em subsidiar a troca de veículos velhos por mais novos. Marco Saltini, vice-presidente da entidade, diz que a desmontagem de automóveis segue sem solução. Já um projeto de renovação da frota de caminhões está avançado. A ideia é destruir veículos com mais de 30 anos. O dono pode comprar um mais novo com benefícios ainda não definidos. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)