O Estado de s. Paulo
Caso você tenha um carro em sua garagem, tente o seguinte exercício: vá a um estabelecimento de venda de carros usados ou acesse um site que realize o mesmo serviço; procure por um carro com especiações similares ao seu; e por fim, pergunte o preço. Grandes são as chances de que você se depare com um preço de venda consideravelmente acima de um ano atrás.
O curioso é que, de maneira intuitiva, pensamos que quanto maior a idade do carro que temos na garagem, menor o seu preço de revenda. Em tempos normais, esse raciocínio está perfeitamente coerente, mas o que ocorre é que justamente não estamos vivendo tempos normais.
Para iniciar nossa investigação precisamos entender a relação entre o mercado de carros novos e o de carros usados. Os dois estão interligados de forma que um funciona como substituto do outro, isto é, o preço de um dos produtos influencia não somente a demanda por ele próprio, mas também a demanda do outro. Mais especificamente, quando o preço de um deles sobe, os consumidores se dirigem ao mercado do substituto, resultando em um aumento na demanda por ele e consequentemente elevando o seu preço. No caso que estamos tratando, esse efeito em cadeia é disparado pela alta dos preços dos carros novos. Ao chegar numa concessionária e observar um preço maior dos carros vindos direto da fábrica, as pessoas passam mais fortemente a considerar comprar usados, de forma que seu preço aumenta.
Apesar desta breve explicação, você deve estar se perguntando: mas por que o preço dos novos aumentou? A resposta literalmente cabe na palma da mão.
Não muito tempo atrás, os noticiários anunciaram a escassez de semicondutores, que são materiais capazes de alternar muito rapidamente entre condutores e isolantes de energia e são bastante sensíveis a condições ambientais como, por exemplo, a temperatura. Esses objetos são matéria-prima essencial na fabricação de componentes eletrônicos, e como bem se sabe, hoje, praticamente todos os automóveis possuem componentes eletrônicos embutidos em forma de painéis sofisticados, aparelhos de som e até mesmo telas de navegação, nos quais esses chips são considerados fundamentais.
Começando pelo lado da oferta, é preciso compreender que o processo produtivo é bastante trabalhoso e não consegue ser operacionalizado por um grande número de empresas. Isso significa que a oferta de chips semicondutores é inelástica no curto prazo, isto é, a produção não consegue crescer e atender rapidamente quando ocorrem casos de aumentos abruptos de demanda e preço. Por isso, empresas que necessitam do material para produção precisam encomendá-lo com bastante antecedência.
Além disso, a seca em Taiwan (sim, a produção de semicondutores necessita de muita água) e um incêndio em uma das maiores fábricas de chips do mundo no Japão completaram a tempestade perfeita. Assim sendo, o tempo de espera para entrega de semicondutores atingiu entre 16 e 18 semanas, acima das 14 semanas durante a crise de 2008 e das 12 semanas em tempos pré-pandemia.
Pelo lado da demanda, a indústria automotiva estava prevendo, acertadamente, uma queda de demanda devido à pandemia do coronavírus, uma vez que houve uma significativa queda na renda global. No entanto, o que aparentemente não estava nas estimativas da maioria dessas empresas era o fato de que o consumo de outros produtos eletrônicos andou na direção oposta. Devido à mudança de realidade causada pelas medidas de contenção da pandemia, aparelhos eletrônicos passaram a ser alternativas de entretenimento, trabalho e atividade física para o mundo.
Assim, o corte de encomendas por parte das montadoras de automóveis fez com que as fabricantes de chips direcionassem sua restrita produção a outros setores. Empresas como Apple e Samsung, os dois maiores compradores de semicondutores do mundo, também foram afetados pela escassez de chips, mas o impacto foi mais suave do que no caso dos automóveis, uma vez que adaptaram sua estratégia de produção de forma mais acurada ao não cancelarem suas encomendas.
Portanto, a combinação dos desafios de oferta e demanda culminaram no aumento de preços observados em tempos recentes. A resolução deste problema é complicada devido às características da produção dos chips. Montadoras de automóveis mundo afora têm tentado resolver tal problema e tomara que encontrem possíveis soluções internas à crise, afinal, milhões de unidades deixam de ser vendidas mundialmente, pondo em risco milhares de empregos e desabastecendo consumidores necessitados.
*Luiz Augusto Ferreira Magalhães é doutorando em Economia de Empresas pela Universidade Católica de Brasília e Pesquisador Visitante no Instituto de Pesquisa Economia Aplicada.
*Mathias Schneid Tessmann é coordenador executivo da graduação em Economia e do MBE em mercados agrícolas, pesquisador e professor no IDP. Doutorando em Economia de Empresas com ênfase em Finanças pela Universidade Católica de Brasília.
(O Estado de s. Paulo/Luiz Augusto Magalhães e Mathias Schneid Tessmann)