O Estado de S. Paulo
A reação do mercado automotivo na Argentina, combinada a um acordo das montadoras com o governo local para liberar as importações de carros, pode ajudar a recolocar rapidamente o país entre os três maiores destinos das exportações brasileiras.
Frente à Argentina, a diferença de exportações a favor da hoje terceira colocada Holanda, que era de US$ 400 milhões até julho, caiu para US$ 205,5 milhões no mês passado em resultados acumulados desde janeiro.
Após zerar com a parada das fábricas em abril, a produção argentina de carros de passeio e veículos utilitários leves voltou a superar 25 mil unidades em agosto, enquanto as vendas, novamente acima de 28 mil, voltaram a níveis pré-pandemia.
Essa melhora decorre, segundo analistas, das próprias disfunções da economia argentina. A abertura do gap entre o câmbio paralelo e a cotação oficial da divisa, pela qual os preços dos carros são fixados, faz com que os automóveis sejam mais acessíveis aos argentinos que guardam dólares em casa.
Além disso, num país onde a inflação passa de 40% em 12 meses, os carros tornaram-se instrumentos de proteção patrimonial na Argentina, já que episódios históricos de bloqueio de saques de contas bancárias e de maquiagem da inflação oficial – base da remuneração das aplicações financeiras – geraram uma postura de resistência da população em investir pelo sistema financeiro.
No início do mês, o governo local acertou com a indústria automobilística um acordo para liberar as importações de 96 mil veículos até o fim do ano. A contrapartida das montadoras será exportar 15 mil carros além do que estava previsto para que a balança comercial de veículos da Argentina feche o ano com saldo positivo de US$ 1,8 bilhão.
Como a maior parte desses fluxos acontece dentro do arranjo de integração dos dois maiores parceiros do Mercosul, e levando-se em conta que carros e autopeças formam as principais categorias da pauta do comércio bilateral, a tendência é de reativação da corrente comercial nos próximos meses.
Pode ser o suficiente para devolver tanto ao Brasil quanto à Argentina as posições que passaram a ser ocupadas nas balanças dos dois países por fornecedores de fora do continente. Retomar a força que essa relação comercial tinha antes vai depender, contudo, da estabilização da economia argentina.
Na avaliação de analistas em comércio exterior, há motivos para otimismo em relação a um cenário melhor no ano que vem, sendo o principal deles o fato de a Argentina ter fechado um acordo com credores privados de uma dívida de US$ 100 bilhões, o que permitirá ao país sair da moratória.
O passo seguinte, espera-se, é um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com quem a Argentina tenta adiar em quatro anos o início do pagamento de um passivo de US$ 44 bilhões.
A partir desses acertos, será possível tirar a pressão sobre as contas externas que afeta a capacidade da Argentina de realizar transações comerciais com o exterior.
Segundo Welber Barral, estrategista de comércio exterior do banco Ourinvest, a própria retomada da economia brasileira deve ser um impulso importante para a Argentina voltar a embarcar produtos de sua indústria ao parceiro comercial. “Se o Brasil crescer 3% no ano que vem, como o Paulo Guedes (ministro da Economia) está falando, já é um sinal positivo para a Argentina”, comenta Barral.
O argentino Federico Servideo, que preside a Câmara de Comércio Argentino-Brasileira, acrescenta que estão sendo debatidos no país estímulos tanto monetários quanto fiscais, como novas linhas de crédito para investimento e consumo, em paralelo a uma minirreforma tributária para simplificar o pagamento de tributos e melhorar a competitividade argentina.
“A Argentina precisa de dólares e, logo, precisa fomentar as exportações, em particular o Brasil. Essas medidas são outro elemento que vai incrementar o fluxo comercial entre os dois países”, afirma Servideo.
Atribuída à recessão argentina e ao contexto de pandemia, a quebra nos fluxos comerciais entre Brasil e seu maior parceiro sul-americano tem motivos puramente econômicos, segundo especialistas em comércio exterior.
Eles alertam, porém, que os dois países precisam manter uma parceria pragmática para que o desalinhamento político entre os governos de Jair Bolsonaro e do peronista Alberto Fernández não se transforme em prejuízos comerciais e maior presença chinesa no mercado argentino.
“Se o Brasil não ajudar, quem vai ajudar é a China. Se não vamos ajudar, não devemos piorar”, comenta José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
“Quem abriu crédito para financiar o comércio exterior da Argentina nos últimos anos foi a China. É o que explica o crescimento das exportações e importações entre esses dois países”, complementa Mario Carvalho, economista da Funcex, fundação que realiza estudos sobre comércio exterior.
Segundo Carvalho, como não se espera que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) entre pesado no financiamento do comércio exterior, o grande ponto de interrogação está no que o Banco Central (BC) vai fazer em relação a instrumentos capazes de amenizar o problema da falta de dólares no país vizinho.
Sendo mais específico, ele se refere ao sistema que permite o pagamento em moeda local das transações feitas entre os países, além do convênio de crédito recíproco que, em cenários de escassez de divisas, facilita o intercâmbio comercial ao reduzir as transferências internacionais. (O Estado de S. Paulo/Eduardo Laguna e Francisco Carlos de Assis)