Líder global encara febre das bicicletas com cautela

O Estado de S. Paulo

 

Porque as academias estão fechadas e todos gostaríamos de fazer um pouco mais de exercício físico; porque estamos evitando ônibus e trens; porque precisamos de mais atividades ao ar livre; ou talvez apenas porque a pandemia nos fez ansiar por prazeres simples. O fato é que as vendas de bicicletas dispararam em todo o mundo. O resultado foi uma escassez internacional. E a maior fabricante de bicicletas do mundo, a taiwanesa Giant, sabe que seu produto continuará em alta por algum tempo.

 

Depois que o presidente dos EUA, Donald Trump, começou sua guerra comercial contra a China, em 2018, a Giant transferiu parte de sua fabricação com destino ao mercado americano para seu país-sede, para evitar as tarifas adicionais (antes, a produção era feita na China). No ano seguinte, a União Europeia impôs direitos antidumping às bicicletas elétricas da China. Então, a Giant também passou a fabricá-las em Taiwan.

 

O governo Trump suspendeu temporariamente as tarifas sobre diversos produtos chineses que são considerados irrelevantes em termos estratégicos. As bicicletas entraram na lista, o que facilitou que a Giant voltasse a produzir na China.

 

Mas a trégua tarifária para certos tipos de bicicletas expirou neste mês, o que significa que a Giant talvez precise ajustar seu arranjo mais uma vez. “Não é que eu queira sair da China. De jeito nenhum”, disse Bonnie Tu, presidente da Giant. “É que não há nada que possa ser feito. Existem muitas barreiras comerciais.”

 

A Giant ganhou destaque décadas atrás, fazendo bicicletas para a icônica marca americana Schwinn, antes de aos poucos se tornar uma potência por si só. Quando a China começou a substituir Taiwan como um centro de manufatura, a Giant abriu fábricas no país. Hoje, a empresa opera cinco fábricas na China, responsáveis por 70% de sua produção.

 

A Giant desligou as fábricas chinesas quando as infecções por coronavírus começaram a se espalhar pelo país e as manteve de portas fechadas por um mês e meio. Aí, quando a Europa e os Estados Unidos começaram o lockdown, os importadores cancelaram os pedidos.

 

As vendas nos Estados Unidos voltaram a aumentar em março, disse Bonnie, e hoje todas as fábricas da Giant estão funcionando quase a todo vapor. Apesar da pressa das pessoas que estão comprando bicicletas, ela não planeja investir “cegamente”.

 

A executiva não está convencida de que essa paixão recémdescoberta pelos veículos de duas rodas sobreviverá à pandemia. “Todo boom termina algum dia”, disse ela. “É apenas uma questão de saber se vai terminar rápida ou lentamente.”

 

Bonnie acha difícil de explicar por que os empresários chineses pareciam acreditar que seus clientes se importavam só com o preço, e não com a qualidade. “Eles estão dispostos a gastar dezenas de milhares de euros para beber uma garrafa de vinho tinto. Por que acham que outras pessoas estão dispostas a andar numa bicicleta barata?”, questiona.

 

Quando se trata de China, sua preocupação é manter a força de trabalho da Giant no país. O interesse dos jovens por empregos em fábricas diminuiu muito. Contratar na China ainda parece difícil no momento. “Antes, quando queríamos contratar um trabalhador na China, tinha três pessoas na fila”, disse Bonnie. “Agora, quando você quer contratar três trabalhadores, tem sorte de encontrar uma única pessoa.”

 

Outros mercados

 

Os laços comerciais entre Taiwan e a China são fortes, ainda que muitas outras coisas estejam tensas no relacionamento. A China reivindica a democracia autônoma como parte de seu território – e não descartou o uso da força para subjugar a ilha.

 

A Giant recentemente abriu uma fábrica na Hungria e pretende produzir 300 mil bicicletas no país no ano que vem. Muitas fabricantes se estabeleceram no Vietnã, mas o Sudeste Asiático não faz sentido para a Giant, segundo Bonnie. Não há mercado local suficiente para suas bicicletas.

 

Será que algum dia a Giant pode fabricar nos Estados Unidos? “Acho que não dá para dizer que não existe essa possibilidade”, disse Bonnie, um tanto enigmática. Desde o início da guerra comercial, disse, “venho pensando que tudo é possível”.

 

A Giant também flerta com a “era dos robôs”. “Se conseguirmos promover mais automação, haverá uma oportunidade maior (para entrada no mercado norte-americano).” Em outras palavras, a única maneira de fazer bicicletas nos Estados Unidos é não contar com muitos americanos.

 

Nova fase

 

A desindustrialização do Ocidente é uma das muitas realidades sombrias de 2020 que a indústria de bicicletas não vai mudar por conta própria. Mas o boom das bicicletas na era do coronavírus aponta para outros tipos de transformações que podem surgir deste momento nebuloso. Cidades estão repensando suas ruas para restringir automóveis e acomodar melhor pedestres e ciclistas. Governos europeus estão acelerando os investimentos em infraestrutura e programas de promoção de bicicletas.

 

Em uma tarde de verão, Bonnie alegremente concordou em dar um passeio perto da sede da Giant, em Taichung. Ela emerge de seu escritório com uma viseira espelhada e uma blusa de ciclismo esverdeada.

 

Mesmo os cantos mais monótonos de Taiwan estão repletos de uma surpreendente beleza natural: montanhas azuis, mar cintilante e vegetação numa infinidade de tons. Taiwan teve pouquíssimas mortes por coronavírus e não fez lockdown.

 

Bonnie tem muitos motivos para se animar na subida da colina com sua bicicleta elétrica azul brilhante. “É isso aí!”, grita. “Vamos nessa!” (O Estado de S. Paulo/Tradução de Renato Prelorentzou)