“Renault quer fazer mais que automóveis para cavar espaço no futuro da mobilidade

Gazeta do Povo

 

Com 120 anos de história construída a partir do motor a combustão, a francesa Renault vem fazendo ajustes de rota para ocupar mais espaços num cenário mundial redesenhado pela nova economia e as mudanças nos hábitos de consumo. O grupo atua desde meados dos anos 2010 com investimentos e desenvolvimento pontual de soluções na área de mobilidade, mas no mês de outubro mergulhou mais fundo, com a criação de uma subsidiária especializada, a MAI.

 

A sigla se traduz como Mobility as an Industry – a mobilidade como indústria – trajeto escolhido pela montadora para não ficar para trás no movimento de soluções inovadoras que alteram rotinas e o mercado continuamente. A empresa tem na presidência Olivier Murguet, executivo de longa trajetória na companhia e que acumula uma série de responsabilidades como Deputy CEO do Grupo Renault (comanda as operações globais nas cinco regiões onde a montadora atua e, também em nível global, é responsável por marketing, comércio, pós-vendas, novas mobilidades e carro elétrico).

 

O mix de atribuições que está sob o guarda-chuva de Murguet demonstra a visão (e necessidade) da Renault, de que o carro não será excluído do futuro da mobilidade. Em entrevista à Gazeta do Povo, o executivo defendeu que a tônica das mudanças no comportamento do consumidor não passa por uma rejeição ao automóvel, mas à posse. “Eu não diria que estão desinteressados do automóvel, eles estão desinteressados da propriedade, mas estão interessados em ter soluções de mobilidade. Essas pessoas não têm mais essa vontade absoluta de ser dono do carro, mas querem ter uma solução para vir de lá até aqui; pode ser qualquer outra coisa, mas pode ser um carro”, arremata.

 

Assim, a Renault permanece como player no papel de fabricante, mas adiciona aos seus negócios a posição de fornecedora e operadora de soluções – que já estão rodando.

 

Evolução de iniciativas para mobilidade

 

Segundo Murguet, o foco das ações de mobilidade da companhia são locais, mas tem alinhamento mundial a dois troncos principais: a operação de serviços de car sharing e a consolidação de plataformas de mobilidade multimodal.

 

A primeira linha de atuação tem destaque na operação do Zity em Madrid. Na capital espanhola, o serviço de compartilhamento da Renault tem atualmente 600 carros e funciona no formato de free floating, ou seja, o motorista destrava o carro pelo aplicativo próprio e pode estacioná-lo em qualquer ponto quando tiver encerrado a sua rota. O Zity, entretanto, vai além da simples oferta dos veículos: a empresa conta ainda com uma equipe de jóqueis, responsáveis por mover os carros de modo a atender a demanda de solicitações, mantê-los limpos e permanentemente carregados, uma evolução desenhada a partir de experiências anteriores, de olho em maximizar a adesão dos usuários – que era comprometida em outros modelos, como o de retirada/entrega do carro compartilhado em pontos fixos.

 

A versão aplicada com sucesso na cidade europeia deve ser trazido para o Brasil, com conversas em fase ainda inicial com a prefeitura de Curitiba, cidade escolhida pelo “DNA de inovação” e a proximidade com a sede da companhia francesa, que tem seu endereço principal de América Latina afixado na região metropolitana da capital paranaense. A cidade de Medellin também está no radar da MAI, mas a multiplicação do Zity ainda depende de resultados.

 

“A parte técnica funciona super bem”, avalia Olivier Murguet, “e se desenvolveu numa velocidade fulminante nos últimos anos. Agora temos que otimizar para que seja rentável o mais rapidamente possível. É uma atividade nova, tem investimento inicial. Sempre damos um [novo] passo quando a gente rentabilizou uma cidade, porque a gente faz isso – é claro -, para ganhar dinheiro. A gente tem que entrar rápido nessa onda, mas executar com cautela para achar a rentabilidade”.

 

A segunda vertical da Renault MAI são plataformas de mobilidade, que funcionam como agregadores de soluções para viabilizar trajetos multimodais ou facilitar o acesso aos transportes. A atividade principal da Renault nesse segmento é desenvolvida através da expertise de uma startup baseada em Londres chamada Karhoo – que tem participação majoritária da montadora francesa.

 

A companhia tem atuação B2B e permite, por exemplo, que a companhia de trens de Paris viabilize a compra de trechos de deslocamento necessários ao seu passageiro para além daquele que será cumprido dentro dos seus vagões. Assim, a plataforma controlada pela Renault é o mecanismo que está por traz do alinhamento dos demais deslocamentos, garantindo um táxi entre a estação e o hotel sem a necessidade de o passageiro fazer qualquer esforço.

 

Outras iniciativas também são administradas pela MAI (para mobilidade, conectividade, carros autônomos) que, segundo seu presidente, “alberga essas ideias para que tenha campo de jogo mais aberto e ágil “. “[A subsidiária] fica entre a estrutura da Renault normal e um Cubo, em São Paulo, super incubador. Nós ficamos um pouco no meio [desses modos de operação] para dar a elas o espaço que precisam para desenvolver uma atividade rentável no futuro”. No Brasil, há movimentações menores, como iniciativas em parceria com incorporadoras, frota pública em Brasília e projeto de descarbonização de Fernando de Noronha.

 

Se não pode vencê-los…

 

A estratégia da tradicionalíssima francesa pode ser entendida, em parte, como uma reação a um tipo de concorrência que surgiu “ontem”, mas que já corrói os lucros da indústria automotiva. Apesar de os serviços de transporte – como aqueles oferecidos pela Uber e demais plataformas de tecnologia – se valerem do carro para atender os usuários, a sua popularização começa a derrubar as receitas das fabricantes, independentemente de as vendas ainda crescerem. No Brasil, a explicação para isso é o volume de motoristas de aplicativo que dirigem veículos de aluguel: a fatia chega a 2/3.

 

Comprados por frotistas a valores mais baixos do que aqueles que seriam pagos por um consumidor pessoa física, esses carros significam números de vendas ainda crescentes, mas que se traduzem em lucros achatados para as montadoras – que antes ganhavam mais com as vendas individuais.

 

O representante da Renault admite que a companhia está ciente dessa característica do mercado brasileiro atual, mas acredita que ainda não há elementos suficientes para avaliar se é uma tendência que deve se consolidar ou se é um movimento mais pontual, de reação ao cenário econômico, ainda combalido apesar dos sinais de recuperação.

 

“‘Esse fenômeno é bem específico do Brasil, mas o que é interessante se perguntar o porquê do crescimento forte dessa atividade. Se isso é uma vontade daquelas pessoas ou uma consequência de determinadas situações. Nós estamos estudando esse fenômeno, tentando entender o que é. Eu não sei se é um fenômeno que vai durar, se é ligado à conjuntura econômica ou se é uma tendência forte das pessoas de ir para esse tipo de emprego. Se isso for uma tendência de fundo, quer dizer que a gente tem que pensar em produtos mais específicos, porque hoje os produtos que são usados para esse tipo de atividade são produtos do line-up. Se isso durar, provavelmente teríamos que considerá-lo como um novo segmento, um novo cliente e, então, um produto específico”, avalia o executivo da montadora.

 

Enquanto fortalece a sua “indústria da mobilidade”, a Renault ainda não abre números de sua nova fase de investimentos para o Brasil, onde soma 9% do market share, mas deve trabalhar para manter a fatia de mercado, descartando crescimento. “Subir o market share acima desse patamar pode ser muito caro. A gente vai se concentrar entre 9% e 10% para manter a posição e fortalecer nossa base de rentabilidade”, com intenção de crescimentos de receita para sustentar investimentos.

 

O ciclo concluído colocou a montadora como quarta maior fabricante do país e incluiu os projetos do Kwid e Oroch, produzidos localmente. Agora falta saber se o país terá capacidade competitiva para superar concorrências internas com outras unidades da América Latina, cujos carros, mesmo importados, chegam a ser 9% mais baratos do que os montados no Brasil”. (Gazeta do Povo/Cristina Seciuk)