O Estado de S. Paulo
Não é verdade que toda a produção de caminhões da Mercedes-Benz no Brasil até o início de 2021 tenha sido vendida, informou a própria empresa ao Comprova. O boato viralizou no Facebook e em grupos de WhatsApp desde o fim de semana.
O autor de um áudio viralizado diz que foi a Joinville (SC) para uma reunião com o “Grupo Martinelli” e recebeu um “feedback” sobre uma palestra dada no dia 4 de novembro pelo presidente da Mercedes-Benz no Brasil, Philipp Schiemer, na Associação Comercial e Industrial de Joinville (ACIJ).
A palestra de Schiemer na ACIJ de fato ocorreu e foi noticiada tanto no site quanto nas redes sociais da associação. Não houve, no entanto, qualquer menção ao conteúdo informado no áudio que viralizou, segundo o qual “a Europa toda está prevendo o Brasil se tornar a maior economia do mundo em pouquíssimo tempo” com as ações tomadas pelo governo Bolsonaro.
Considerando a projeção do PIB de 2019 calculada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia brasileira ainda é muito menor do que a maior economia do mundo, os Estados Unidos. O Brasil deve encerrar 2019 como a nona maior economia do mundo, com PIB de US$ 1,85 trilhão. Esse valor corresponde a menos de 10% da projeção para o PIB anual dos EUA: US$ 21,44 trilhões.
O narrador do áudio também afirma que é preciso apoiar o programa Mais Brasil, do governo federal, que seria “a pá de cal para desimpedir a economia brasileira”. No entanto, além de o programa precisar da aprovação do Congresso para entrar em vigor, não há estudos aprofundados sobre os possíveis impactos das medidas propostas.
Em nota ao Comprova, a assessoria da Mercedes-Benz negou que o conteúdo do áudio seja verdadeiro. “Gostaríamos muito que o mercado brasileiro estivesse tão positivo a ponto de esgotar a nossa produção. Mas reforçamos que estamos diante de mais uma ‘fake news’”.
O Comprova solicitou acesso à gravação da fala completa de Schiemer durante o evento, mas tanto a Mercedes-Benz quanto a ACIJ disseram que não possuem arquivo com áudio ou vídeo da palestra.
Segundo o conteúdo viralizado, Schiemer teria dito que, “hoje, se algum transportador quiser comprar mais 10 caminhões novos da Mercedes, só a partir de maio de 2021 poderíamos aceitar”.
Em nenhum momento, o autor do áudio diz seu nome, nem quando foi a suposta reunião, nem quem participou dela.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Como verificamos
O Comprova entrou em contato com a Mercedes-Benz do Brasil e a ACIJ por e-mail, além de buscar notícias sobre a visita do presidente da montadora à ACIJ no site da própria associação e em veículos de imprensa locais, como o NSC. Além disso, foram consultadas as atuais projeções do PIB de 2019 e de crescimento do PIB em 2020, segundo o FMI.
A economia brasileira pode se tornar a maior do mundo?
O autor do áudio fala ainda que “a Europa toda está prevendo o Brasil se tornar a maior economia do mundo em pouquíssimo tempo”, sem citar qualquer fonte, estatística ou projeção. As fontes disponíveis publicamente apontam um cenário bastante diferente.
Um dos principais indicadores de uma economia é o Produto Interno Bruto (PIB). Ele revela o valor adicionado à economia em um determinado período. Uma das formas de calculá-lo é somar o valor dos bens e serviços finais produzidos pelo país no período de tempo analisado.
Considerando o PIB, a economia brasileira ainda é muito menor do que a maior economia do mundo, os EUA. Segundo dados do FMI, o Brasil deve encerrar 2019 como a nona maior economia do mundo.
Além disso, a última projeção de crescimento da economia brasileira, publicada pelo FMI, é de 0,9% – ante 2,5% que a entidade previa em janeiro deste ano.
Segundo cálculos do FMI divulgados em outubro, a projeção de crescimento da economia americana em 2019 é de 2,4%. Ano passado, os EUA cresceram 2,9%. A projeção da entidade para 2020 aponta crescimento de 2% para o PIB do Brasil e de 2,1% para os EUA.
Ou seja: pelo menos no ritmo de crescimento previsto pelo FMI, é impossível que a economia brasileira seja maior que a americana nos próximos anos.
O professor Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EESP), explicou ao Comprova que um país não se torna a maior economia do mundo em tão pouco tempo.
“Para o Brasil ser a maior economia do mundo, não basta só ele crescer, os outros países têm que crescer menos. É difícil justificar que você consiga crescer mais que todo o resto por muito tempo. O que faz um país crescer é investir em educação, infraestrutura, mas isso leva muitos anos. Você não consegue um crescimento econômico forte em curto prazo. Isso leva tempo. Não é algo que em dois, três ou dez anos você ultrapassa”, disse Sampaio.
O que é o Mais Brasil?
O narrador do áudio também afirma que o programa Mais Brasil, do governo federal, “é a pá de cal para desimpedir a economia brasileira”, sem explicar nada sobre como isso poderia acontecer, nem o que seria exatamente “desimpedir a economia brasileira”.
O Mais Brasil foi anunciado no começo do mês pelo governo. Trata-se de um pacote de medidas para reduzir as despesas e possibilitar investimento público, mas que ainda precisa do aval do Congresso.
Com o Mais Brasil, o governo prevê, por exemplo o repasse de R$ 400 bilhões para estados e municípios em 15 anos e a liberação de R$ 220 bilhões de fundos públicos para pagamento de juros. Ao mesmo tempo, o pacote traz propostas como reduzir as jornadas e salários de servidores quando a despesa pública obrigatória chegar a 95% das receitas; além da extinção de pequenos municípios.
Analistas ouvidos pelo Nexo no começo do mês viram com ceticismo a relação entre um ajuste nas contas públicas e o crescimento da economia. Eles alertam que uma redução nos gastos com salários de servidores, por exemplo, pode ter como consequência a retração da economia.
O que o presidente da Mercedes-Benz do Brasil disse em Joinville?
Nenhuma das fontes consultadas – NSC, ACIJ e Mercedes-Benz – cita a suposta venda de toda a produção de caminhões da montadora no Brasil até 2021. A Mercedes-Benz, inclusive, nega isso: “Essa afirmação não procede”, declarou a empresa em nota.
Segundo nota publicada no site da ACIJ, Schiemer disse na palestra em Joinville que a Mercedes-Benz planeja investir R$ 4,8 bilhões no Brasil entre 2016 e 2023. O texto também diz que Schiemer informou a entrada em circulação de 100 mil novos caminhões no país este ano. O executivo indicou que há uma expectativa de crescimento no mercado de caminhões no Brasil nos próximos dois anos.
Um texto publicado no dia 4 no site NSC Total traz as mesmas informações da nota da ACIJ.
O que é o “Grupo Martinelli”? Eles sabem de quem é a voz no áudio?
Em resposta enviada por e-mail pela assessoria de imprensa, a ACIJ disse que não há um “Grupo Martinelli”. O que existe são duas empresas catarinenses chamadas Martinelli Advogados e Martinelli Auditores. Ambas, segundo a ACIJ, são comandadas pelo empresário e advogado João Joaquim Martinelli.
João Joaquim Martinelli também é presidente da ACIJ. Segundo a associação comercial, ele afirma que a reunião citada no áudio não aconteceu, e que não sabe a procedência da gravação.
Repercussão nas redes
O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.
De acordo com o Monitor de WhatsApp da UFMG, o áudio circulou em 66 grupos públicos no aplicativo até segunda-feira, 11.
No domingo, 10, o áudio foi postado no Facebook, em forma de vídeo, pelo perfil Jose Marcio Castro Alves. O Comprova enviou mensagens para Alves por email e pela rede social, mas não obteve resposta.
Até esta quinta, 14, o vídeo teve 21,7 mil compartilhamentos e 272 mil visualizações. O vídeo é ilustrado por uma montagem com uma foto da sede da Mercedes-Benz no Brasil, em São Bernardo do Campo (SP), e uma imagem do presidente Jair Bolsonaro (PSL). A montagem é acompanhada pela frase “Ótima notícia”. (O Estado de S. Paulo)