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Akio Toyoda, presidente da Toyota, neto do fundador da gigante japonesa, abriu sua participação na CES de 2018 com a seguinte frase:
“Nossos competidores já não fazem apenas carros. É sobre empresas como Google, Apple e até mesmo o Facebook que eu penso à noite”, desabafou o Sr. Toyoda (é assim mesmo que se escreve, com a letra d).
Na ocasião da CES, uma feira que até poucos anos antes não tinha maior participação do setor automotivo, a Toyota apresentou um carro autônomo cujas parcerias curiosamente incluíam uma miríade de marcas, de Amazon a Uber, passando pela Pizza Hut.
As big techs entraram no mercado de mobilidade e isso muda a maneira como as pessoas gastam seu dinheiro com deslocamentos, e, por consequência, impacta o mercado de automóveis.
O sintoma mais visível é a quantidade de pessoas que decidem não ter carros e fazer seus deslocamentos de “Uber”, segundo dados do Shared-Use Mobility Center (SUMC).
A empresa de consultoria Accenture prevê que a mobilidade como serviço será mais lucrativa do que a fabricação e venda de carros. Isso tem colocado a indústria automobilística em alerta, como eu já havia escrito anteriormente. É o fim das car makers e início da indústria da mobilidade.
O segredo para o sucesso no segmento de mobilidade como serviço parece ser o de embalar uma série de opções de transporte em um pacote unificado. A empresa ou grupo de empresas que conseguirem dominar o cenário antes levará vantagem.
De forma análoga, é mais ou menos o que está acontecendo agora mesmo no mercado de streaming de filmes e séries, com Netflix, Disney e HBO disputando hegemonia.
Siga o dinheiro e verás outro sintoma preocupante para as montadoras. De acordo com um levantamento da consultoria CB Insights, 9 em cada 10 dólares investidos em “new mobility” foram parar nas startups que oferecem o serviço, em detrimento das fabricantes de bikes, patinetes e assemelhados.
Significa que existe no mercado a percepção de que prestar serviço de aluguel dá mais dinheiro que produzir o veículo. Significa também que, muito provavelmente, existe uma bolha formada no nicho de mobilidade compartilhada.
Em busca de um sono mais tranquilo, CEOs das montadoras tradicionais estão apostando em parcerias, alianças e outros arranjos.
Seja através de memorandos de entendimento com concorrentes de peso, seja investindo pesado em startups, existe um forte movimento nesse sentido.
Até mesmo mega-fusões estão na mesa, como é o caso da Fiat e Renault – que no fim não aconteceu, mas quase. Depois de desistir desta fusão, o grupo Fiat-Chrysler está negociando com a Peugeot-Citroen com o objetivo de “criar um grupo que figure entre os líderes da mobilidade”.
Para sobreviver, as velhas montadoras estão atirando em tudo que se move. A Ford comprou várias startups, entre elas a Spin, de patinetes elétricos, e investe pesado na Rivian, startup de picapes de luxo elétricas. Enquanto isso, a Ford vê seus lucros diminuírem paulatinamente e tem seu credit rating perto de virar junk.
A Renault acaba de lançar uma subsidiária para cuidar só de assuntos de nova mobilidade. O tema é tão sério que os franceses batizaram a empresa de Renault M.A.I (leia-se Mobility As an Industry). A nova subsidiária fará a gestão do segmento de mobilidade como um serviço.
Trocando em miúdos, significa tratar com atenção especial os segmentos de compartilhamento, conectividade e micro-mobilidade.
O Grupo Renault vem atuando há quatro anos no desenvolvimento de novos serviços de mobilidade compartilhada, com ou sem motorista (como Renault MOBILITY, Zity em Madrid, Moov’in.Paris e Marcel), além de realizar aquisições e investir de forma estratégica em diversas startups especializadas em mobilidade (Karhoo, Yuso, Como, iCabbi, Glide).
No Brasil, a empresa apóia um programa de emissão zero de carbono na ilha de Fernando de Noronha.
Já a GM colocou meio bilhão de dólares na Lyft, maior concorrente da Uber lá na terra do Trump. A VW vem revelando planos ambiciosos no mundo da nova mobilidade há algum tempo, como já comentei aqui. Recentemente, a montadora alemã decidiu, ela também, investir em autônomos, tempo o Vale do Silício como locação para este fim.
A Audi lançou seu próprio patiskate (mistura de patinete com skate) que é um item opcional para quem comprar o modelo e-Tron. A montadora criou inclusive um novo cargo na hierarquia: project manager for micro-mobility. Achei chique. Além disso, em parceria com Italdesign e Airbus,a Audi lançou o projeto de um taxi-drone modular futurista.
Para não ficar a ver carneirinho nas nuvens, a rival Porsche se emparceirou com ninguém menos que a Boeing para fazer um troço parecido com um carro que voa.
Nesse mercado de taxi-drones, quem quer dominar a coisa toda tão logo as redes 5Gs entrarem em operação é a chinesa EHang, que já está buscando seduzir o mercado europeu.
Mas taxi-drone voador é um mercado que os americanos chamariam de pie in the sky, por enquanto. Está lá no futuro e ninguém sabe se vai realmente vingar, mas há quem queira estar na vitrine porque vai que, né, deslancha daqui a pouco.
Voltando para a terra firme, quem está no centro das parcerias de veículos autônomos é a Waymo, firma que pertence à Alphabet, dona da Google.
A Waymo já assinou parcerias com a Renault, Nissan e Jaguar Land Rover, Honda, entre outras. Mas nesse segmento as coisas são bem mais complexas e já existe uma teia de relacionamentos que envolvem firmas de big data, fabricantes de processadores, operadoras de aplicativos e, claro, as montadoras – que não tem nem de longe o protagonismo nessa história.
O papel das montadoras, eventualmente, será o de fornecer os vagões de operação de mobilidade. E só. Elas correm o risco de perderem o contato com o consumidor final, que é o usuário de mobilidade urbana, pois quem vai intermediar o transporte será alguma operadora de aplicativos.
Ao mesmo tempo em que veem seus lucros despencar, as montadoras estão se vendo obrigadas a investirem em pesquisa e desenvolvimento para acompanhar o estado-da-arte de empresas como a Tesla, que está pelo menos 5 anos à frente de qualquer outra montadora em termos tecnológicos.
Ainda que muito criticada, a Tesla vem crescendo continuamente. Ela verticalizou quase toda a cadeia de suprimentos e por isso não fica muito à mercê de parcerias – a não ser no caso das baterias, na qual depende da Panasonic.
A Tesla tem planos próprios para lançar robô-táxis autônomos. Seu sistema de direção autônoma já é mais avançado do que o da Waymo. No modelo de negócio da Tesla, o proprietário do veículo vai poder ganhar dinheiro com o carro autônomo.
Imagine que ele usa o carro para ir ao trabalho e, ao chegar, libera seu carro para fazer corridas de táxi durante o expediente. No final do dia, ambos ganharam dinheiro trabalhando.
Com isso, a Tesla ameaça os dois negócios das montadoras. O imediato, que é a venda de carros para usuários finais, e ameaça também as operadoras de apps como Uber, Lyft e outras nas quais as montadoras estão investindo.
A mobilidade definitivamente entrou em fase de mudança exponencial e é até difícil se manter atualizado sobre tudo o que está acontecendo nesse setor.
A verdade é que as big techs e suas startups não dependem de fabricantes de veículos para ganhar dinheiro com serviços de mobilidade. Já o contrário é verdadeiro. (Baguete/Carlos Martins, idealizador da E-24, a primeira corrida de carros 100% elétrica do Brasil e escreve para o Baguete sobre temas relacionados com indústria automobilística e mobilidade)