O Estado de S. Paulo
No fim de agosto, quando o furacão Dorian se dirigia para a costa oeste dos Estados Unidos, Elon Musk, o dono da Tesla, fabricante de carros elétricos, anunciou que alguns de seus clientes que estavam no caminho do furacão verificariam que seus carros repentinamente tinham capacidade de ir mais longe com uma única carga de bateria. Como muitos veículos modernos, os fabricados por Musk são vistos como computadores sobre rodas conectados à internet.
Os modelos mais baratos da Tesla têm partes de suas baterias desativadas pelo software do carro para limitar seu alcance. Ao simples toque de um teclado em Palo Alto, a empresa remove essas restrições e dá aos motoristas acesso temporário à força total das baterias.
Os carros computadorizados de Elon Musk são exemplo de uma tendência muito mais ampla. À medida que os computadores e a conectividade se tornam mais baratos, faz sentido inseri-los em um número cada vez maior de coisas que, em si, não são computadores – desde máquinas de café a vacas e robôs de fábrica, criando uma “internet das coisas”.
É uma revolução lenta que vem ganhando ritmo há alguns anos, quando os computadores encontraram seu caminho e entraram em carros, telefones e televisores. Mas a transformação está prestes a adquirir velocidade. Uma previsão é de que em 2035 o mundo terá 1 trilhão de computadores conectados, embutidos em tudo, de embalagens de alimentos a pontes e roupas.
Esse novo mundo trará muitos benefícios. Os consumidores terão mais comodidade e os produtos farão coisas que versões não computadorizadas não conseguem. Os alarmes inteligentes da Amazon, por exemplo, vêm equipados com sensores de movimento e câmeras de vídeo. Trabalhando juntos, eles conseguem também formar o que é, na verdade, uma rede privada, permitindo à empresa oferecer aos seus clientes um sistema “vigilância digital do bairro” e passar qualquer vídeo de interesse para a polícia.
A iluminação inteligente nos prédios poupará energia. Os equipamentos computadorizados conseguirão prever o próprio colapso e marcar uma manutenção preventiva. Vacas conectadas terão seus hábitos de comer e sinais vitais monitorados em tempo real, o que significa que produzirão mais leite e necessitarão de menos remédios quando adoecerem. Tais ganhos são individualmente pequenos, mas somados repetidas vezes no âmbito de uma economia são matéria-prima de grande potencial de crescimento.
Onipresente
No longo prazo, porém, os efeitos mais visíveis da internet das coisas serão os da maneira como o mundo funciona. Cada vez mais as empresas se tornarão companhias de tecnologia, a internet se tornará onipresente. Como resultado, uma série de discussões não resolvidas sobre propriedade, dados, vigilância, competição e segurança extrapolará do mundo virtual.
Comecemos com a propriedade. Como Elon Musk mostrou, a internet dá às empresas a capacidade de se manterem conectadas com seus produtos, mesmo depois de vendidos, transformando-os em algo mais próximo de serviço do que produto. Isso já confunde ideias tradicionais de propriedade.
Quando a Microsoft fechou sua loja de e-books em julho, por exemplo, seus clientes perderam a possibilidade de ler livros que haviam comprado (a Microsoft propôs reembolsá-los). Alguns dos que adotaram logo no início os aparelhos de “casa inteligente” perceberam que eles cessaram de funcionar depois de as empresas fabricantes perderem interesse no produto.
E isso faz o equilíbrio de poder pender do cliente para o vendedor. A John Deere, fabricante americana de tratores de alta tecnologia, se envolveu em uma disputa sobre restrições de software
que impede seus clientes de consertarem eles próprios seus tratores. E como o software não é vendido, mas licenciado, a empresa chegou a afirmar que, em algumas circunstâncias, o comprador de um trator nem mesmo está comprando o produto, mas apenas recebendo uma licença para operá-lo.
A Apple, fabricante de smartphones, oferece atualizações dos seus aparelhos por apenas cinco anos após o lançamento. Mas aparelhos como máquinas de lavar-roupa ou maquinário industrial podem ter um período de vida de dez anos ou mais. As empresas terão de calcular como dar suporte para dispositivos computadorizados complicados por um longo tempo depois de os programadores originais terem mudado.
Privacidade em discussão
Os dados serão outro foco de tensão. Em grande parte da internet o modelo de negócios é oferecer serviços “grátis” que são pagos com dados íntimos e valiosos do usuário. Isso vale para a internet das coisas também. Colchões inteligentes monitoram o sono. Implantes médicos observam e modificam batidas cardíacas e níveis de insulina, com vários graus de transparência. No mundo virtual, discussões sobre o que deve ser monitorado e quem é o dono dos dados resultantes, parecem irrealistas e teóricas.
E há o problema da competição. Fluxos de dados derivados dos dispositivos de internet das coisas são tão valiosos quanto os obtidos nas postagens do Facebook e no histórico de buscas no Google.
Prever as consequências de qualquer tecnologia é difícil, especialmente uma tão universal quanto a dos computadores. O advento da internet de consumo, há 25 anos, foi recebido com otimismo. Hoje são os defeitos da internet, desde o poder dos monopólios à espionagem empresarial e a radicalização online, que dominam as manchetes.
No caso da internet das coisas o estratagema será maximizar os benefícios e minimizar os prejuízos. Não será fácil. Mas as pessoas que vêm analisando como fazer isso têm a vantagem de ter passado pela primeira revolução da internet, o que deve dar a elas alguma ideia do que esperar. (O Estado de S. Paulo/Tradução de Terezinha Martino)