Um ambiente sem trânsito

O Estado de S. Paulo

 

O delírio é como o ar, está em todas as partes. Ou, mais exatamente, é como a água: toma a forma do recipiente e pode ter leito e rumo, como num rio, ou dispersar-se como no chuveiro. A característica do delírio é misturar a dimensão das coisas, sem distinguir o pequeno do grande e sem noção de urgência. Fantasia prioridades e, assim, engana-se a si próprio, como hoje entre nós, no Brasil.

 

O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, comporta-se e atua, agora, como inspetor-geral de trânsito, e não como chefe do Poder Executivo, sobre quem pesam responsabilidades urgentes. Sua grande preocupação tem sido o tráfego. Primeiro, o das balas, que quer incrementar, levando o País a um torneio diário em que revólveres, pistolas e fuzis disputam a primazia de saber quem é mais certeiro na pontaria e mata mais. Agora, o tráfego dos automóveis, que, na vida moderna, se transformou numa espécie de poder paralelo e influi ou manda na vida em sociedade.

 

Era de esperar que quem recebeu votação exuberante e inegável apoio popular (e tem seguidores que lhe dão até o apelido de “mito”) tivesse um plano salvacionista que nos tirasse do impasse gerado pela politicalha. Em vez disso, o presidente da República mostra-se mais interessado em comandar miudezas. Bolsonaro veio do chamado “baixo clero” da Câmara dos Deputados, preocupado só com o insignificante, e segue dando a impressão de que só sabe da pequena política de “dar a impressão”.

 

No Palácio do Planalto, já ao início, rebelou-se contra o radar nas estradas, como se a alta velocidade não exigisse controles. Ou como se os acidentes de trânsito no Brasil não matassem entre 35 mil e 45 mil pessoas por ano, ao longo da última década, ferindo mais de 2 milhões.

 

Neste quadro, agora sugere medidas para facilitar a balbúrdia que faz do trânsito um violento exibicionismo de velocidade e bravatas. Quer facilitar as facilidades (dito assim, num pleonasmo esdrúxulo) e ser benevolente com os tais “pontos” que punem o mau motorista.

 

E, sem qualquer sentido, quer abolir o que já é sinônimo de zelo familiar – a “cadeirinha” nos carros, que provadamente evita que as crianças tenham uma antecipada cadeira no céu…

 

A seguir nesta marcha, o presidente apelará ao ministro das Relações Exteriores e ao da Educação, mandando que descubram a possível ingerência malévola do marxismo cultural nos cintos de segurança dos automóveis. E, sem piedade, irá abolir essa nefasta chaga vermelha. Talvez até mande queimar os cintos existentes em imensas fogueiras, como aquelas em que os nazistas incineravam livros.

 

Tudo é possível quando se perde a dimensão da realidade. Todas as hipóteses passam a viáveis – até as inviáveis – quando as ideias fixas tornam-se impermeáveis e nos comandam.

 

Em plena semana do Dia Mundial do Meio Ambiente, a 5 de junho, o presidente desconheceu, de fato, a gravidade do momento em que vive a humanidade (não só o Brasil) em razão do aquecimento global. Dias atrás, em reunião com ministros de Economia de diferentes governos da Europa, África e América Latina, o papa Francisco alertou sobre a acelerada degradação do planeta e exigiu (sim, “exigiu”) que respeitassem, de fato, o Acordo Climático de Paris. O Brasil nem sequer se fez representar por nosso embaixador no Vaticano.

 

Mesmo com ternura, o papa foi incisivo: “Em nosso tempo, lucros e perdas monetárias são mais valorizados do que vidas e mortes e o patrimônio líquido das empresas tem precedência sobre o valor infinito da humanidade”, disse Francisco, frisando que o aquecimento global “leva o mundo ao desastre”. Lembrou que os investimentos em energia limpa – como vento e sol – diminuíram pelo segundo ano consecutivo no mundo, embora os cientistas alertem para os perigos dos combustíveis como carvão e petróleo: “Continuamos a percorrer estradas antigas, presos entre nossa má contabilidade e a corrupção de interesses. Seguimos a contar como lucro aquilo que ameaça nossa sobrevivência”, disse o papa.

 

Dias antes, em fins de maio, na reunião mundial da organização R20 sobre mudanças climáticas, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, já advertira sobre “a destruição do planeta pelos gases de efeito estufa gerados pelo carvão e petróleo”. Os membros da R20, organizados pelo ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, reuniram especialistas governamentais e cientistas de diferentes áreas e tomaram uma decisão drástica que resume a grande tragédia atual: rebaixaram de 30 para 12 anos o prazo máximo para substituir o carvão e o petróleo por energias limpas e, assim, salvar o planeta.

 

O diagnóstico gerou um alerta do secretário-geral da ONU: “Financiar a poluição é crime. É preciso terminar com os subsídios dos governos ao carvão e petróleo. É urgente deixar de financiar a destruição do mundo”, lembrou Guterres.

 

Entre nós, porém, o fundamental não faz eco entre os governantes e os políticos nem por eles é assimilado ou percebido. Mais grave, ainda, é constatar que este silêncio ou esta mudez passa à população e nos faz cegos diante da grande ameaça.

 

As miudezas (algumas até importantes, mas pequenas diante da hecatombe do planeta) continuam a ocupar nosso dia a dia. Já não observamos o essencial e, assim, o engano se transforma em elemento perturbador e vira crime. Sim, pois sem o engano o crime seria quase um jogo, como o dos gladiadores no Coliseu de Roma, na antiguidade – brutal e desigual, mas com um perdedor condenado de antemão.

 

Agora, nosso descaso ou displicência nos transforma de perdedores em vítimas. Mentimos a nós mesmos e – sem radar e com armas para todos – construímos um ambiente sem trânsito para o futuro.

 

Perdida a dimensão da realidade, todas as hipóteses passam a viáveis – até as inviáveis. (O Estado de S. Paulo/Flávio Tavares, jornalista e escritor, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA 2004, é professor aposentado da Universidade de Brasília)