Derrapando na crise argentina

O Estado de S. Paulo

 

A crise argentina tem um custo enorme para o Brasil, porque a indústria brasileira, em especial a automobilística, depende excessivamente do mercado vizinho, o terceiro maior parceiro comercial do País. As montadoras exportaram neste ano, até abril, 45% menos que nos primeiros quatro meses de 2018. A demanda interna foi 10,1% maior que a de um ano antes, mas o efeito desse aumento foi praticamente anulado pela redução das vendas externas. No balanço geral, a produção foi 0,1% menor que a de janeiro a abril do ano passado. Tradicionalmente, 70% ou mais dos veículos exportados pelo Brasil vão para a Argentina. Com recessão, inflação disparada e crise cambial, esse mercado encolheu dramaticamente nos últimos dois anos. Efeitos dessa crise são visíveis nas cifras do comércio exterior e nos balanços e no total de empregados de muitas fábricas em operação no Brasil.

 

O País faturou de janeiro a abril US$ 26,33 bilhões com a exportação de manufaturados, valor 7,3% menor que o de um ano antes, pela média dos dias úteis. A recessão e a crise cambial na Argentina explicam boa parte dessa retração.

 

As vendas para o segundo maior país do Mercosul caíram de US$ 6,06 bilhões há um ano para US$ 3,25 bilhões no primeiro quadrimestre de 2019, com redução de 46,5%. Manufaturados

 

correspondem a pelo menos 80% dessas exportações. O terceiro maior parceiro comercial do Brasil – China e Estados Unidos são o primeiro e o segundo – é também um dos mais importantes compradores de bens industriais elaborados. No caso do mercado americano, também muito relevante para a indústria brasileira, manufaturados têm correspondido, regularmente, a mais de metade do valor vendido pelo Brasil. Mas a proporção é menor que no caso dos embarques para a Argentina.

 

A indústria automobilística é um dos segmentos mais dependentes do mercado argentino. Há uma dependência mútua, consolidada a partir de um acordo automotivo firmado, reformado e prolongado por anos. Esse acordo, com regime de reciprocidade alterado em várias ocasiões, foi uma das marcas da relação comercial entre as duas maiores economias do Mercosul no século 21.

 

Na prática, esse acordo se converteu num pacto de acomodação entre as indústrias de veículos e de componentes instaladas nos dois países. Poderia ter sido parte de uma história de expansão em outros mercados, se o Mercosul tivesse cumprido uma de suas mais importantes missões originais.

 

O bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai deveria ter sido, por meio da integração e da cooperação entre os quatro países, uma plataforma para inserção competitiva na economia global. Mas o Mercosul mudou de rumo e de ambição, a partir da instalação do petismo e do kirchnerismo nos governos brasileiro e argentino. Falou-se de um resgate da vocação inicial do bloco regional, os presidentes Mauricio Macri e Michel Temer chegaram ao poder, mas pouco se avançou nessa direção.

 

Dirigentes do setor automobilístico e de outros segmentos da indústria têm pedido ao governo medidas para aumento de competitividade. Com a crise argentina, as dificuldades de ação internacional ficaram mais evidentes. Poucas indústrias têm sido capazes de concorrer fora da região.

 

Vários fatores de competitividade importantes dependem do governo. Isso inclui a expansão e a melhora da infraestrutura, a boa prestação de serviços públicos, a segurança jurídica, a oferta de financiamento, a qualidade da tributação e a formação de capital humano, para só mencionar alguns itens. O setor privado pode e deve participar de algumas dessas tarefas. Mas também é preciso a busca de produtividade e de inovação dentro de cada setor produtivo. A indústria aeronáutica e o agronegócio são exemplos de sucesso nesses quesitos. Igualmente visível tem sido o fracasso de programas baseados em subsídios fiscais e financeiros e em protecionismo. Produtividade é um bom tema para conversações entre indústria e política. Quem está interessado em conversações desse tipo – com seriedade? (O Estado de S. Paulo)