Jornal do Carro
A aposentada Neila Cecilio tem artrose no joelho há 18 anos. Por isso, só dirige automóveis com câmbio automático. Quando soube por sua médica que poderia comprar carros novos com isenção fiscal, ela se surpreendeu. “Eu pensava que esse benefício só era dado a pacientes com limitações físicas mais sérias, como cadeirantes”, ela diz.
Neila se muniu de um dossiê de exames médicos, deu início aos trâmites e, seis meses depois, comprou um Volkswagen Polo. Sem IPI e ICMS, o hatch saiu quase 25% mais barato. “Eles analisaram a documentação e concederam a isenção dos impostos. Foi fácil, sem discussão.”
Histórias como a da aposentada vêm se multiplicando. Atualmente, as vendas para o chamado público PCD têm um peso significativo no setor automotivo do País. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria, Comércio e Serviços de Tecnologia Assistiva (Abridef), as vendas de veículos com isenção passaram de cerca de 42 mil unidades em 2012 para 187,5 mil no ano passado, uma alta de 346%. Isso levou algumas montadoras a criar versões específicas para o segmento.
Embora a sigla PCD signifique “pessoas com deficiência”, o rol de situações que autorizam o benefício é bem maior. Inclui problemas neurológicos, câncer, diabetes, HIV, doenças degenerativas e outras que afetam a mobilidade, como artrose e tendinite.
A ampliação das possibilidades da lei e a maior divulgação do tema ajudam a explicar a disparada desse tipo de venda. Presidente da Abridef, Rodrigo Rosso diz que esse movimento foi gradual. “Até 2012, era preciso ser o condutor do veículo para ter a isenção. Quando o benefício se estendeu a pessoas que não podiam dirigir, pacientes com Síndrome de Down, deficientes visuais, tetraplégicos e autistas foram contemplados”, ele diz.
“Depois, quando a norma passou a falar em mobilidade reduzida, o leque abriu de vez. Câncer de próstata ou mama limita a força e o movimento. Diabetes causa amputação de membros. Se você vir a quantidade de doenças que deixam sequelas motoras, um em cada dois consumidores pode comprar com isenção.”
Recuo
Essa constatação acendeu uma luz de alerta no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). “Ninguém controla a evolução na interpretação de uma lei, e ela está indo para um campo econômico que não havíamos calculado”, diz o coordenador dos secretários do Confaz, André Horta Melo. “Não era para ter essa extensão toda. Desse jeito, sai mais barato o Estado fazer logo o transporte da pessoa necessitada.”
No dia 5 de julho, o órgão elevou de dois para quatro anos o prazo mínimo para que um carro adquirido com isenção de ICMS possa ser revendido a um consumidor que não faça jus ao benefício. A ideia, segundo Melo, é corrigir distorções.
“O espírito original dessa isenção era compensar o custo que os deficientes tinham para fazer as adaptações nos carros. Eles pagavam caro e ficavam até mais de quatro anos com o veículo”, afirma Melo. “Com trocas permitidas a cada dois anos, muita gente estava comprando um carro novo toda hora. Isso não é isonomia (tratamento igualitário pela lei), mas vantagem financeira. Queremos limitar a financeirização desse benefício.”
Rosso diz que a medida prejudica consumidores de menor poder aquisitivo. “Quem tem dinheiro vai comprar um modelo mais caro (acima de R$ 70 mil, com isenção apenas do IPI) e continuar trocando a cada dois anos”, acredita. “Já quem só pode comprar até R$ 70 mil (sujeito à nova carência) será penalizado com a maior desvalorização. Terá de fazer um desembolso maior ao trocar de carro e estará mais sujeito a problemas mecânicos com o uso.”
Entenda: limite é diferente para casa imposto
Os benefícios fiscais na compra de carros novos por portadores de necessidades especiais estão em dispositivos diferentes da lei. O desconto do IPI surgiu em medida provisória de 1995 e foi regulamentado em lei federal de 2003. O abatimento do ICMS foi criado por um convênio do Confaz de 2012. Já a isenção do IPVA é conferida por cada Estado em lei específica.
O desconto do IPI é o que exige menos condições, já que se aplica a carros nacionais ou importados e de qualquer faixa de preço. Já a isenção do ICMS só é concedida para modelos feitos no Brasil ou Mercosul e que tenham preço sugerido de até R$ 70 mil.
Quando esse limite foi definido, em março de 2012, dava para comprar até sedãs médios, como o Toyota Corolla. Atualmente, boa parte dos modelos até esse valor são hatches e sedãs compactos.
Mesmo com a perda do poder de compra, causada por mais de seis anos de inflação, o Confaz não dá sinais de que irá atualizar esse teto. “A ideia não é atingir valores muito altos”, diz o coordenador do órgão, André Melo. “Queremos garantir a mobilidade ao deficiente de classe média, não àquele que possa pagar, que tenha condições financeiras.”
No caso do IPVA, o limite para isenção é de R$ 70 mil em São Paulo e R$ 85 mil no Rio de Janeiro, por exemplo. “Mas o governo de São Paulo deve aumentar esse teto para R$ 120 mil. A decisão será publicada em breve”, diz Rodrigo Rosso, presidente da Abridef.
Segmento PCD tem versões novas e outras com venda suspensa
De olho na alta das vendas, várias montadoras criaram versões pensadas para o público PCD, com venda exclusiva ou não. Todas trazem câmbio automático, suficiente para facilitar o uso do carro por um número expressivo de portadores de limitações físicas. Como a conta precisa fechar abaixo de R$ 70 mil para permitir o desconto do ICMS, várias dessas versões deixam de fora itens de perfumaria como rodas de liga leve, central multimídia e faróis de neblina.
A Chevrolet já oferecia a versão Advantage de Onix e Prisma, com câmbio automático de seis marchas e acabamento simplificado. Para o hatch, a tabela parte de R$ 55.290. Agora, lançou uma configuração do Cobalt para PCD, com o mesmo tipo de transmissão, por R$ 69.990.
Até recentemente, o único Volkswagen com câmbio automático abaixo de R$ 70 mil era o Polo Comfortline 1.0 turbo. Agora, a marca oferece essa transmissão para Gol, Voyage, Polo e Virtus com motor 1.6 de até 117 cv. Com isso, a opção mais em conta para o público PCD passou a ser o Gol, com tabela de R$ 54.580.
Como os utilitários-esportivos passaram a ser os queridinhos do consumidor, a procura pelas versões destinadas às vendas especiais disparou. Tanto que algumas marcas deixaram de aceitar novos pedidos neste ano.
Com dificuldade de adequar a produção à demanda, as fabricantes corriam o risco de não conseguir entregar as encomendas dentro do prazo de 120 dias estipulado nas cartas de isenção, o que frustraria os clientes.
Para o Kicks S Direct, única versão com tabela abaixo do limite (R$ 68.640), a aceitação de novos pedidos foi suspensa no início de junho e só será retomada em janeiro do ano que vem. A Nissan informa que, de abril a junho deste ano, as vendas para PCD cresceram 300% ante o mesmo período de 2017.
A Hyundai dobrou o volume de produção do Creta Attitude 1.6, versão exclusiva para PCD, tabelada a R$ 69.990. Ao receber 10 mil encomendas apenas em julho, a empresa optou por interromper as vendas. “Nossa capacidade produtiva se esgotaria rapidamente e tínhamos de honrar os pedidos feitos”, diz um porta-voz da marca. As vendas só serão retomadas em 2019, ainda sem previsão de data.
Leitores do JC que tentaram comprar um Captur em abril também foram informados pela Renault que as vendas especiais do SUV foram interrompidas por tempo indeterminado. Na segunda-feira, porém, a empresa garantiu que as vendas para PCD estão normalizadas.
O modelo mais pedido é o Captur Life, a R$ 69.990, seguido do Duster Authentique, a R$ 59.990. Os dois utilitários-esportivos têm motor 1.6 flexível de até 120 cv e câmbio automático do tipo CVT.
Vale lembrar que, nas vendas especiais para PCD, o carro é faturado ao cliente diretamente pela fábrica. Por isso, as unidades expostas em concessionárias não podem atender esse tipo de pedido.
Passo a passo para comprar com isenção
1 – Laudo médico. Obtenha com seu médico um laudo que descreva a doença, explique suas necessidades especiais e informe as cirurgias já realizadas;
2 – Perícia do Detran. Em uma clínica credenciada ao Detran, será feita uma perícia para verificar se você efetivamente faz jus ao benefício;
3 – Habilitação especial. Em autoescola especializada, faça as aulas de direção em veículo adaptado e o exame prático, para a obtenção da CNH especial;
4 – Isenção do IPI. Munido da documentação necessária, solicite a carta de isenção do IPI a uma delegacia da Receita Federal. O trâmite pode ser feito pessoalmente ou por meio de empresa especializada;
5 – Compra do veículo. Escolha seu carro. Muitas autorizadas têm divisões exclusivas para vendas especiais;
6 – Isenção de ICMS. Vá à Secretaria da Fazenda do Estado, com uma carta emitida pela concessionária. Para ter isenção do ICMS, modelo deve ser nacional ou fabricado no Mercosul e sua tabela cheia não pode exceder os R$ 70 mil. Despachantes também podem fazer esse trâmite;
7 – Detran e DSV. O Detran expedirá o documento (CRV) do carro. Se houve isenção do ICMS, ele não poderá ser revendido por quatro anos. Cadastre o veículo na Prefeitura, para dispensá-lo do rodízio municipal, e solicite ao DSV um cartão DEFIS, para poder estacioná-lo em vagas exclusivas;
8 – Adaptações. Procure uma oficina especializada se necessitar de adaptações mecânicas no veículo.
Depoimento: “Hoje, eu não faria de novo”
“Depois de um acidente de carro, perdi o tônus do pulso esquerdo, tenho placas e parafusos e só posso guiar carro com direção hidráulica e câmbio automático. Já havia comprado um Focus com isenção fiscal em 2011 e deu tudo certo.
Desta vez, comprei um Honda City Personal e me arrependi. O desconto não é tão atrativo. A tabela cheia é de R$ 70 mil, mas o carro vem sem rádio, sem rodas (de liga leve), sem nada. Para colocar esses itens, você gasta R$ 5 mil, ou R$ 10 mil se quiser central multimídia. Então, é como trocar seis por meia dúzia.
Com o transtorno que tive com a obtenção das cartas de isenção, despachante, espera, hoje eu não faria uma compra PCD de novo. O teto de R$ 70 mil comprava muito mais há sete anos.
Em 2011, o processo foi muito mais rápido e peguei um carro com tudo o que eu queria. Já esse meu City é bem simples. Só nas rodas de liga leve, gastei mais de R$ 2.500, e nem são as que eu queria. Eu desci um degrau ao invés de subir. E ainda tenho de ficar quatro anos amarrado a esse carro”, Santiago Schultz, empresário. (Jornal do Carro)