O Estado de S. Paulo
Um tombamento do autódromo como espaço de valor ambiental seria muito bem acolhido. Quando se desfrutam as corridas, desfruta-se simultaneamente a paisagem de Interlagos. Uma paisagem aberta, visualmente ampla, com bairro tombado estritamente residencial ao lado, que compõe essa paisagem. Com os edifícios no seu interior obstruindo essa largueza de visão, como pretende o setor imobiliário, agora com o aval da Prefeitura de São Paulo, essa paisagem perderia qualquer correlação com o nome Interlagos. Mais adequado seria passar a chamar a região de Interprédios.
Entre Interlagos ou Interprédios, qual seria a opção da população paulistana? Pessoalmente, não tenho dúvidas de que seria Interlagos. Porém a decisão está sendo adotada mediante consulta a um único segmento da sociedade: o setor imobiliário, que no Brasil só tem sabido ganhar dinheiro entupindo as cidades de prédios.
Já em outros lugares mais avançados, como na Alemanha, na Escandinávia e em boa parte dos Estados Unidos, a construção de prédios muito altos é proibida. Aqui, isso é feito a despeito da capacidade de suporte infraestrutural, destacadamente a de transporte, impedindo que cálculos técnicos determinem quantos metros quadrados podem ser construídos em cada região da cidade, completando a Lei de Zoneamento. (Um cálculo que dirigi tecnicamente em 2008, que custou na época R$ 2,5 milhões, foi contratado pela Secretaria de Transportes Metropolitanos em convênio com a Prefeitura, quando José Serra era prefeito de São Paulo e Geraldo Alckmin, governador, acabou por ser abortado depois de pronto, já na gestão municipal de Gilberto Kassab e, ao que sei, por orientação política dos mesmos empresários).
Embora tenham buscado transformá-lo em mero estudo acadêmico, alterando-lhe o título, ele atendia a uma exigência do Plano Diretor da Gestão de Marta Suplicy, calculando estoques em metros quadrados de direitos passíveis de construir por região da cidade, de acordo com o Planejamento Urbano, dos Transportes e do Uso do Solo, sendo secretário do Planejamento o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim. Uma exigência técnica legal que o Plano Diretor de Fernando Haddad, infelizmente, eliminou, em enorme retrocesso.
Agora, a atual gestão, iniciada por João Doria Júnior e delegada a Bruno Covas, também está deixando de levar tudo isso em consideração, como se mais e mais prédios coubessem, sem verificar se há ou não capacidade de suporte para abrigá-los, por toda a cidade, nas viagens que geram, sobrecarregando os já congestionados sistemas de circulação, até mesmo na sensível região dos mananciais.
É especialmente nas áreas de mananciais que se impõe, além da capacidade de suporte do sistema de transporte, a capacidade de suporte ambiental. A implantação de linhas de metrô só tem conseguido correr atrás do prejuízo, em completa defasagem com a demanda derivada da localização das atividades comandadas pelo zoneamento, com esse adensamento urbano sem convergência com a oferta de transporte planejada. Os congestionamentos que sofremos há anos em todo o sistema de circulação são resultado dessa desconexão entre oferta e demanda, que só o planejamento urbano público, que calcule a capacidade de suporte, consegue oferecer.
E qual é a resiliência dos mananciais em receber mais e mais edificações?
O conceito de resiliência aplica-se perfeitamente a essa especialíssima região. À medida que novos loteamentos são abertos e mais edificações impermeabilizam o solo, menor se torna a absorção das águas de chuva pelo solo, recarregando o lençol freático. Soma-se o prejuízo da poluição difusa que os esgotos não são capazes de retirar, a qual, somada ao assoreamento pelo barro levado pelas chuvas que a abertura de ruas e lotes produz – o que reduz progressivamente a capacidade de diluição dessa mesma poluição difusa –, vai intoxicando suas águas, apontando para a perda total desses mananciais da Billings e da Guarapiranga, os principais da metrópole, quando vivemos preocupante escassez de água para o abastecimento da capital. Tal escassez está exigindo enormes investimentos visando a superá-la com o bombeamento de água de outras bacias. E o adensamento na área de Interlagos, na boca de entrada da região, estimulará de vez essa ocupação urbana predadora ambiental, que levará à perda irreversível desses mesmos mananciais, pois não se está controlando o aumento progressivo da poluição difusa, por omissão das leis especificas de proteção dos mananciais e sua regulamentação.
Tais limites deveriam ser definidos com base em modelos matemáticos de simulação do futuro. Isso é essencial para preservar os mananciais. O adensamento urbano não apenas ameaça a cada vez mais escassa água potável metropolitana, mas também ameaça a maior área de lazer, com muito verde e grandes lagos, da nossa metrópole, que é uma das maiores do planeta.
Manter o autódromo de Interlagos amplo e horizontal, com um máximo de verde e pequenos lagos em seu interior, sim. Transformá-lo em Interprédios, nunca. O grande respiro de verde e lagos que essa região significa para os quase 20 milhões de habitantes metropolitanos, cada vez mais sufocados pela selva de pedra, está sendo asfixiado por uma ocupação urbana sem o devido controle de sua capacidade de suporte ambiental. Os amantes do automobilismo deveriam mobilizar-se não apenas para manter um palco aprazível para as proezas das máquinas que correm, mas também como contribuição para uma cidade mais humana para todos os seus habitantes, amantes ou não dos automóveis de corrida.
A ocupação urbana predadora ambiental levará à irreversível perda dos mananciais. (O Estado de S. Paulo/Candido Malta Campos Filho, arquiteto e urbanista, professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismos da Universidade de são Paulo (FAUUSP), foi secretário de planejamento da prefeitura de São Paulo)