Exame
Na coluna que mantinha na revista americana Newsweek, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia Paul Samuelson (1915-2009) escreveu que Wall Street havia previsto “nove das últimas cinco recessões” no mercado americano. A frase irônica tinha como alvo os analistas de ações, que, para Samuelson, haviam feito investidores perderem dinheiro com previsões erradas ou simplesmente alarmistas. No Brasil dos últimos quatro anos, bem ao contrário, o problema das previsões foi a falta de alarme. Quase ninguém antecipou uma recessão como a que ocorreu em 2015 e 2016, quando o PIB encolheu 7%. Quando o Brasil começou a despencar, empresas que não foram ágeis o suficiente para ajustar a rota tiveram prejuízos muitas vezes bilionários. Talvez o melhor exemplo seja o que se viu no setor automobilístico. Um estudo exclusivo feito, a pedido de EXAME,- pela consultoria alemã Roland Berger mostra que as grandes montadoras que atuam no país estão entre as companhias que mais sofreram nesse período. Para voltar ao azul, estão se reestruturando – e seguindo uma estratégia bem diferente da que era adotada antes da crise.
O estudo se concentra nos resultados de Ford, General Motors e grupo FCA, dono das marcas Fiat e Jeep. Para compor o grupo das quatro maiores montadoras, responsáveis por metade da venda de automóveis no Brasil, EXAME levantou no mercado a estimativa de prejuízo da Volkswagen. Entre o início de 2014 e dezembro de 2017, Ford, GM e Volks tiveram um prejuízo somado de 22 bilhões de reais na América do Sul – a FCA teve lucro no acumulado do período. O número equivale a 5% das vendas dessas empresas na região nesse intervalo. Como o Brasil responde por cerca de 70% do resultado dessas montadoras na América do Sul, e o mercado argentino, o segundo maior, não sofreu tanto, é possível presumir que o grosso do prejuízo tenha vindo mesmo daqui, segundo a Roland Berger. O grupo da Fiat chegou a perder 320 milhões de reais em 2015, mas conseguiu se recuperar e lucrar 1,1 bilhão nos últimos quatro anos. De acordo com o levantamento, a Ford foi a montadora que mais teve perdas nesse período, de 11,9 bilhões de reais. A GM teve prejuízo de 3,8 bilhões, e a Volks, segundo estimativas de mercado, perdeu cerca de 6,2 bilhões (a empresa não confirma o dado).
Em parte, os resultados ruins são explicados pela péssima fase do mercado automotivo no Brasil nos últimos anos. As vendas caíram 40% de 2014 a 2017. Com ociosidade nas fábricas acima de 50%, essa foi a pior crise pela qual o setor passou desde a década de 80, quando a importação de veículos e peças foi suspensa pelo regime militar e o país viveu uma fase de desabastecimento de combustível. Mas o prejuízo foi potencializado pelo excesso de otimismo das empresas. “Quando o consumo no Brasil deu um salto, o crédito e as condições de pagamento eram bastante favoráveis e diversas montadoras vieram para cá, incentivadas também pelos benefícios do governo. Houve muita euforia”, afirma Tereza Maria Fernandez, consultora da MB Associados.
Em 2013, quando o Brasil produzia quase 4 milhões de veículos por ano, executivos do setor previam que chegaríamos a 5 milhões em 2018, o que manteria o país como o quarto maior mercado automotivo do mundo. Hoje, estamos na oitava posição, com uma produção de 2,7 milhões de veículos. “Antes de 2024, dificilmente veremos o nível de produção pré-crise”, diz o argentino Carlos Zarlenga, presidente da GM no Mercosul. “Mas não podemos ficar parados esperando o mercado voltar. Investimos e fizemos ajustes internos com o objetivo de ganhar eficiência.” Na GM, líder de mercado, e também em outras grandes montadoras, os ajustes começaram por demissões em série. No setor como um todo, mais de 150.000 trabalhadores foram dispensados, sem contar os que tiveram os contratos suspensos temporariamente, prática comum na indústria automotiva, conhecida como layoff. Mas não ficou só nisso. No último ano e meio, as estratégias passaram a ser revistas com o objetivo principal de tornar as empresas mais eficientes e rentáveis. Houve reestruturações de áreas e cargos, mudanças em processos internos e no portfólio de automóveis produzidos e vendidos aqui. “A crise lembrou as montadoras que, por melhores que sejam as projeções, o setor é cíclico. Por isso, é importante ter carros que atendam ao mercado local e que também possam ser exportados”, diz Vitor Klizas, presidente da consultoria Jato -Dynamics, especializada no setor.
Mudança de rota
Na Ford, a chegada de um novo presidente em agosto de 2016 marcou o início da nova fase da empresa. Toda a diretoria e os principais gerentes passaram a escutar as ligações dos consumidores semanalmente para mapear os problemas apontados pelos clientes e suas demandas. “Colocar o consumidor no centro da tomada de decisão está mudando a maneira como operamos. Os times de engenharia e desenvolvimento precisam atender primeiro aos pedidos dos consumidores, e não ao que está em sua lista de prioridades”, diz o irlandês Lyle Watters, presidente da Ford na América do Sul. Uma queixa recorrente dos clientes, segundo Watters, era a demora nas revisões e nos consertos feitos nas concessionárias. A empresa identificou que o problema era a falta de peças, principalmente as importadas, e reforçou os estoques. Com isso, diminuiu o tempo médio dos reparos em 86%. A Ford foi a marca que mais cresceu num ranking da consultoria especializada J.D. Power que mede a satisfação dos clientes na compra de veículos novos: passou do oitavo lugar, em 2016, para o terceiro, em 2017. Além disso, as vendas subiram 15% no ano passado. Watters não comentou o prejuízo acumulado nos últimos quatro anos, o qual, segundo especialistas no setor, se deve principalmente à dificuldade da empresa em reduzir custos, que, na média, são mais altos do que os dos principais concorrentes. “A Ford também precisa posicionar melhor a marca para conseguir cobrar mais pelos carros que produz, que são bastante completos”, diz Rodrigo Custodio, diretor da Roland Berger no Brasil.
Na GM, as mudanças começaram em setembro de 2016, quando Zarlenga assumiu a presidência. O primeiro passo foi integrar as operações da Argentina e do Brasil em uma nova empresa, chamada GM Mercosul. Hoje, cada diretor é responsável por sua área nos dois países. Como exemplo: os diretores de planejamento financeiro e de consórcios ficam em Rosário, na Argentina, e o diretor financeiro e o próprio Zarlenga ficam no Brasil. Com isso, segundo Zarlenga, houve economia de custo e as decisões passaram a ser tomadas de forma mais rápida. Além disso, são produzidos os mesmos carros aqui e lá – assim, quando um mercado tem problemas, as vendas podem ser direcionadas ao outro país. Depois de quatro anos de prejuízo, a GM voltou ao azul no segundo semestre de 2017, quando teve um lucro operacional de 200 milhões de dólares na América do Sul. Já a Volks começou, no ano passado, a apostar em carros desenvolvidos e produzidos aqui, mas que podem ser adaptados e vendidos em outros países (não somente na América Latina). Também definiu algumas ações para ganhar eficiência. Um exemplo: negociou com sindicatos para reorganizar os turnos das fábricas e evitar sobreposição de funcionários. Isso aumentou a produção na fábrica da via Anchieta, em São Bernardo do Campo, em 100 carros por dia. Na fábrica de Taubaté, no interior paulista, a produção diária cresceu em 31 carros. Além disso, a Volks anunciou que investirá 7 bilhões de reais no Brasil e lançará 20 modelos até 2020 – a maior ofensiva já feita pela empresa no país. O plano faz parte de uma estratégia global da Volks para tentar resgatar sua imagem depois que veio à tona, em 2015, a informação de que a companhia fraudava os testes de emissão de poluentes em carros a diesel. No Brasil, a Volks perdeu 9 pontos em participação de mercado de 2012 para cá (em 2017, ficou com 12,6% ). “Começamos um processo de virada em todos os aspectos, financeiro, de relacionamento com fornecedores, concessionárias e clientes, no portfólio de produtos e na equipe. É um processo longo, mas já demos os primeiros passos”, diz Pablo Di Si, presidente da Volkswagen na América Latina, exceto no México. “O objetivo é voltar a ser líder do mercado”.
A Volks é a mais agressiva, mas não é a única que pretende trazer novos carros para o Brasil. A Ford prevê vender sete novos modelos aqui neste ano. Um deles é o Ka Freestyle, um míni-SUV, que deve custar entre 60 000 e 80 000 reais. Outro é o Mustang, um dos principais ícones de luxo da marca, que deve custar 300.000 reais. A GM não revela o número de modelos inéditos, mas prepara-se para trazer ao país seu carro elétrico Bolt, que deve chegar às concessionárias em 2019. A aposta das empresas é que isso faça diferença nos resultados. Foi o que aconteceu com o grupo Fiat. A montadora italiana foi a que mais investiu no Brasil de 2012 a 2017: foram cerca de 20 bilhões de reais na construção e na modernização de fábricas, na introdução de novas tecnologias e no lançamento de produtos. Em 2013, quando a Fiat assumiu o controle do grupo Chrysler, dono das marcas Jeep, Dodge e Ram, intensificou as vendas desses carros aqui. Dois anos depois, inaugurou em Pernambuco sua mais moderna fábrica do mundo para produzir os SUVs Jeep Renegade, Jeep Compass e o Fiat Toro. Conclusão: a Jeep conquistou quase 5% do mercado, compensando a queda da marca Fiat, e o grupo como um todo aumentou sua rentabilidade. Das quatro maiores do país, apenas a Fiat teve lucro operacional no acumulado dos últimos quatro anos, graças, em especial, às vendas da marca Jeep. “O futuro sustentável do mercado está em empresas multimarcas e multimodelos, como é o nosso caso”, diz Stefan Ketter, presidente da FCA para a América Latina.
As grandes montadoras coreanas e japonesas instaladas no Brasil sentiram menos os efeitos da crise e, por isso, quase não alteraram sua estratégia no país. O motivo, segundo especialistas, é o fato de terem se instalado mais recentemente, com fábricas e carros mais modernos, o que fez com que ganhassem mercado e fossem mais rentáveis. Em 2012, Fiat, Ford, GM e Volks detinham, juntas, 71% do mercado brasileiro de carros e veículos comerciais. A fatia caiu para 54%, e o espaço foi ocupado pelas montadoras asiáticas, especialmente a coreana Hyundai e a japonesa Toyota. A realidade é diferente, contudo, entre as montadoras asiáticas de menor porte que não têm fábrica no país, caso das chinesas JAC e Lifan e da coreana Kia. Durante o período em que o programa público de incentivos ao setor Inovar-Auto vigorou, de 2013 a 2017, essas empresas diminuíram a quantidade de veículos importados, porque havia uma espécie de cota de importações – acima de certo patamar, o imposto era maior. Havia desconto para as montadoras que decidissem construir fábricas no país, e elas começaram a fazer isso, mas interromperam os planos quando a economia entrou em crise, o que acabou prejudicando seus resultados.
A primeira fabricante de automóveis a se instalar no Brasil foi a Ford em 1919. Na época, apenas montava seu Modelo T, o Ford “Bigode”, com peças importadas. Foi só em 1956 que o primeiro carro produzido no Brasil chegou às ruas, um Romi-Isetta, que tinha dois lugares e uma porta. Hoje, são mais de 30 montadoras no país e 65 fábricas com capacidade de produzir 5 milhões de veículos. Durante a recente crise americana, as filiais brasileiras ajudaram as matrizes a sobreviver. O maior montante de lucros já transferido para as sedes, de 5,8 bilhões de dólares, foi em 2008, quando a crise eclodiu e GM e Ford anunciaram prejuízos globais de 31 bilhões e 14,6 bilhões de dólares, respectivamente. Agora, o setor automotivo está em recuperação no Brasil: as vendas cresceram 9% em 2017 e a previsão é de mais 12% neste ano. Se isso se confirmar, um desafio das montadoras será ter fornecedores à altura. Segundo o Instituto Nacional de Recuperação Empresarial, de 2012 a 2016, 340 fabricantes de autopeças pediram recuperação judicial e extrajudicial e 373 faliram. Com exceção das grandes, as demais fabricantes de autopeças enfrentam dificuldades financeiras ou não conseguem obter recursos para investir em produtos mais modernos. Além disso, as montadoras terão de investir para recuperar os clientes de varejo. O crescimento das vendas em 2017 foi impulsionado pela demanda de locadoras de veículos e empresas de frotas, que, juntas, compraram 35% do total de veículos vendidos no país, um recorde. O problema é que esses clientes exigem descontos, comprimindo a rentabilidade das indústrias.
Uma característica que não mudou no setor é o hábito de recorrer a Brasília para obter incentivos. Com o fim do Inovar-Auto, a expectativa era que seu substituto, o Rota 2030, entrasse em vigor em janeiro, e isso não ocorreu. O impasse é o custo da concessão de incentivos tributários, estimado em 1,5 bilhão de reais. A indefinição levou o presidente da BMW no Brasil, Helder Boavida, a fazer uma ameaça de deixar o país. Apesar da crise dos últimos quatro anos, o setor automotivo responde por 4% do PIB e por 22% do PIB da indústria de transformação. Seu resultado ajuda a determinar o desempenho da economia. O fato de os números mostrarem que o mercado de carros começa a se recuperar é um alívio. Mas isso não significa que todas as montadoras voltarão aos bons tempos. A concorrência mais acirrada é algo que veio para ficar. (Exame/Naiara Bertão)