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Focados nos automóveis, os grandes centros extinguem a solidariedade – e o carro acaba visto como inimigo público
O caro leitor talvez não tenha percebido mas as esquinas de nossas principais cidades estão, aos poucos, sendo tomadas por farmácias. Grandes redes compram os imóveis, demolem e constroem estabelecimentos com, no mínimo, quatro vagas na frente e, se possível, outras tantas na lateral. O mesmo acontece até com padarias mas nem sempre nas esquinas.
Boa parte dos manuais de franquias preconizam que haja, pelo menos, duas vagas para que a loja seja considerada viável – e não estamos falando de nada que requeira compras de grande volume. Muitas vezes, são lojas de chocolates ou mesmo sorveterias. Se for do ramo de alimentação, não contar com estacionamento próprio, só mesmo em locais de enorme trânsito de pessoas como, por exemplo, a Avenida Paulista.
Em cidades como Nova York e Paris, estacionamento não é condição básica para o comércio: o que interessa é uma calçada larga para que se ponham gôndolas de produtos
Sim, podem-se contratar manobristas e fazer convênios com estacionamentos comerciais, mas isso encarece o produto vendido e restringe seu mercado. O que se deixa na mão do valet de um restaurante, por exemplo, equivale a meia garrafa de vinho ou a uma sobremesa. Só na Grande São Paulo há quase 200 shopping centers com aluguéis exorbitantes, sujeitos a rolezinhos e arrastões e que, ainda assim, nos cobram para estacionar. Até igrejas sofrem significativa queda de afluência, porque a maioria delas foi construída antes de a vida urbana ter passado de “humanocêntrica” para “automovelcêntrica”.
Em cidades como Nova York e Paris isso não é condição básica para que se abram estabelecimentos comerciais. Na verdade, o que interessa é contar com uma calçada larga o bastante para que se ponham gôndolas repletas de produtos – os transeuntes só entram para pagar. No verão usa-se gelo moído para refrescar frutas e legumes; no inverno, água quente para evitar o congelamento, quando não se recolhem as gôndolas. Quem já viveu num lugar assim sabe como é gostoso sair a pé olhando as vitrinas, até mesmo comendo uma fruta de época. Lá, mesmo os supermercados podem não ter estacionamento. Que eu me lembre, na Broadway há dois entre as ruas 110 e 116 e a gente faz compras com um carrinho parecido com os de feira.
O estacionamento como imperativo para viabilidade comercial tem duas origens tão distintas que se acabam confundindo: as péssimas condições de nossas calçadas e a falta de segurança.
Não resta dúvida de que segurança tenha a ver com a disponibilidade de uma polícia farta, bem treinada e bem equipada, além de uma justiça célere e um sistema penitenciário eficiente. Mas há outro fator igualmente importante: a vida em comunidade. O fato de as pessoas conhecerem-se e protegerem-se é imperativo para que o equipamento público funcione a contento. Numa sociedade indiferente ao que acontece com o vizinho, fica muito mais fácil cometerem-se crimes impunemente, porque ninguém se vai preocupar com denunciar, sequer com chamar a polícia. Impera o “não é problema meu”.
Até calçadas são para carros
Isso está intimamente ligado ao fato de as pessoas viajarem encapsuladas em veículos fechados com vidros destinados a escondê-las do mundo. As pessoas simplesmente não se conhecem, não se cumprimentam, não sabem os nomes umas das outras, não se ajudam. Não se promove a solidariedade advinda dos passeios noturnos, das compras de bairro, das quermesses da paróquia, das reuniões de pais e mestres. Nos primeiros três meses vivendo em Nova York eu já conhecia todos os estabelecimentos comerciais, chamando e sendo chamado pelo nome.
Ao mesmo tempo, nossas calçadas são interpretadas como o caminho para o carro sair do asfalto e entrar em casa, não como um espaço destinado aos pedestres. Quando o carro não cabe no recuo do imóvel, das duas uma: ou o proprietário “estica” o terreno, ou adapta a grade do portão para “cobrir” a traseira do veículo. Como se não bastasse, os moradores não entendem que aclives devem ser compensados do portão para dentro para que o passeio público acompanhe o leito carroçável. Formam-se degraus com mais de 50 cm de altura, o que impede o trânsito de carrinhos de bebê, cadeiras de rodas e carrinhos de compras.
Usar o carro tornou-se agressão ao bem estar do indivíduo nos grandes centros: elege-se o automóvel como culpado e apontam-se contra ele as baterias
O remédio é usar o carro para as mais mínimas compras. Então os estabelecimentos comerciais optam por usar qualquer recuo como vagas, mesmo que para dois carros somente. Estacionamento requer guias rebaixadas, o que acaba com a possibilidade de parar junto ao meio-fio e obriga outros motoristas a circular em busca de um estacionamento pago. Isso aumenta o número de veículos ocupando, sem necessidade, nossas ruas e o trânsito e a segurança deterioram-se.
Tudo fica mais caro porque temos de somar o custo do quilômetro rodado até para comprar pão ou uma única cartela de aspirina. E aí, sobra menos dinheiro para usar o automóvel para a preconizada liberdade que se pretende que ele proporcione. Ser obrigado a dirigir todos os dias num trânsito infernal faz com que os automóveis fiquem na garagem justamente quando deveriam estar nas estradas, ou seja, nos fins de semana.
Há muito que usar o carro deixou de ser uma opção para ser até uma agressão ao bem estar do indivíduo nos grandes centros. A sociedade tende a retaliar, mesmo que não contra o inimigo real. Elege-se um culpado e apontam-se contra ele as baterias, mesmo que injustamente. Atingir a mobilidade urbana, segundo o senso comum, passa pela execração do automóvel.
A própria ideia de mobilidade padece do império da motorização, ou seja, trata de atravessar cidades em trajetos de mais de 40 km para resolver coisas que bem poderiam estar ao alcance no bairro. Usar o automóvel tem que ser opção, não alvo de imposição. Assim, antes de banir os automóveis tornando-lhes a presença impraticável – seja pela construção de ciclovias, seja pela simples proibição -, é preciso tratar de fornecer alternativas.
Quais? Elas forçosamente começam pelo fortalecimento da economia de bairro, tanto no que concerne ao comércio como ao lazer, passando pela educação. É esta última é que vai fazer com que os moradores cuidem de suas calçadas para cuidarem e serem cuidados pelos vizinhos. É a educação que vai fazer entender que de nada adianta melhorar o transporte coletivo, se não se derem aos pedestres os meios para atingir o ponto de embarque.
Resumindo, não são os automóveis que devem ser execrados: a mentalidade da população é que precisa ser alterada no sentido da solidariedade. (Best Cars/Luiz Alberto Melchet)