A briga dos carros digitais

O Estado de S. Paulo

 

De todas as tecnologias que estão por explodir, poucas parecem tão ficção-científica quanto os carros autônomos. E, no entanto, já há carros robôs rodando na região de São Francisco, Boston e Pittsburgh, nos EUA; na Cingapura e em Tóquio; em Londres, Gotemburgo e em toda a Holanda. Esta semana, o mais importante grupo digital chinês, Baidu, anunciou parcerias com uma penca de empresas que vão da alemã Bosch à americana Ford, passando pela Microsoft. Há uma corrida na praça: quem vai botar nas lojas, primeiro, um carro desses.

 

A Navigant Research, uma consultoria que se especializa em avaliar mercado e concorrentes em tecnologias que estão para sair das pranchetas, faz anualmente um levantamento sobre automóveis que dispensam motoristas. Tenta responder quem chegará na frente.

 

O resultado de seu estudo pode surpreender muita gente pois, dentre as dez empresas mais adiantadas na tecnologia, nove são tradicionais. A líder é a Ford. Em segundo, a GM, e em terceiro uma aliança entre Renault e Nissan. Daí Daimler, Volkswagen, BMW. Empatadas em sétimo, Waymo e Volvo. Duas empresas de Detroit, uma francesa ligada a uma japonesa, e três alemãs antes de aparecer o Vale do Silício. A Waymo, afinal, é a subsidiária da Google que investe nesta tecnologia – e está colada na Volvo sueca.

 

Disrupção é um processo brutal. Acontece quando uma nova tecnologia pega uma indústria inteira, seu modelo de negócios, e o vira de cabeça para baixo. É isto que o digital está fazendo em todas as áreas – e muitas empresas tradicionais não conseguirão sobreviver. É difícil porque não basta ter a nova tecnologia para continuar no ramo. É preciso uma espécie de suicídio, quase um ato de fé em abandonar o que sempre funcionou em detrimento do que é só uma hipótese a respeito de como o mundo será. Este movimento custa muito dinheiro e impõe uma pressão psicológica imensa.

 

O que estas empresas estão fazendo é incrível – e não tem nada de trivial. Para a Ford, passa pela parceria com a chinesa Baidu. Passa, também, por uma filosofia: diferentemente das europeias, que apostam inicialmente em carros autônomos para o mercado de luxo, a empresa que popularizou o automóvel com o Modelo T (aqui, o Ford Bigode) quer ser também a companhia que botará o primeiro veículo autônomo acessível à classe média nas revendedoras.

 

Em paralelo, ela faz também uma aposta similar à da GM: quem tem menos de 30 anos talvez nunca queira possuir um carro. A General Motors se tornou investidora na Lyft, principal concorrente americana da Uber. Faz todo sentido. Hoje, fabricantes de automóveis ganham na venda e apenas. A Uber, a Lyft, Cabify, 99 – esses ganham a cada quilômetro rodado com passageiro. Num carro autônomo, não há gasto com motorista. Como quem paga um número de gigas de download mensal para a operadora de celular, será possível comprar 60km por mês para chamar o veículo-robô através de um app.

 

Enquanto os fabricantes tradicionais lutam para sobreviver à disrupção, há uma disputa que se acirra no campo do software. É onde a Baidu pode surpreender. O modelo de negócios escolhido pela Google com sua Waymo é vender uma plataforma que qualquer fabricante de carros possa comprar e instalar no seu para torna-lo autônomo. A Baidu quer fazer o mesmo – mas oferecendo o programa de graça.

 

A Apple inventou o modelo de smartphone que colou, passando à frente de Blackberry e Nokia. Mas quem levou 90% do mercado foi a Google, com o Android, porque qualquer fabricante poderia usá-lo sem custo. É irônico. Os chineses querem fazer o mesmo – e, desta vez, periga a vítima ser quem inventou o truque. (O Estado de S. Paulo/Pedro Doria)