A travessia da pinguela

O Estado de S. Paulo

 

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comparou o governo Temer a uma pinguela, ponte tosca e frágil, mas que precisaria ser atravessada, até o fim de 2018. Depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de absolver a chapa Dilma-Temer da prática de crime eleitoral, é muito provável que Temer conclua a tal travessia. No entanto, pinguela (ou pinguelo) também significa armadilha, dessas construídas para capturar aves ou ratos. E é exatamente numa baita armadilha que o governo e o País estão metidos.

 

Mesmo antes da crise deflagrada pela delação de Joesley Batista, a política econômica de Temer mostrava-se ambígua, mas o saldo era positivo.

 

De um lado, teve méritos inegáveis, destacando-se a aprovação da emenda constitucional do teto de gastos públicos e a proposição de reformas estruturais de grande alcance, como a trabalhista e a da Previdência. Além disso, o presidente montou uma equipe econômica competente, melhorou a gestão de empresas públicas importantes, como BNDES e Petrobrás, e o Banco Central vem obtendo enorme sucesso na derrubada da inflação.

 

Por outro lado, seja por derrotas ou por concessões, permitiu que o Legislativo promovesse medidas nocivas ao País. Logo na sua primeira semana de governo, Temer bancou generosos aumentos salariais aos funcionários públicos, a maior parte deles estáveis, enquanto a taxa de desemprego assumia proporções insuportáveis, atingindo principalmente os trabalhadores do setor privado de menor rendimento. O governo também perdeu a batalha no Congresso para restabelecer a responsabilidade fiscal nos Estados e municípios, em troca da renegociação das dívidas desses entes federativos. Apesar dos déficits primários gigantescos, considerando o registrado em 2016 e os previstos para 2017 e 2018, não enfrentou com vigor a reversão de renúncias fiscais e desonerações, cuja conta ultrapassa, só no corrente exercício, R$ 280 bilhões.

 

Mas foi após a bomba lançada por Joesley que a pinguela virou armadilha. A ideia, ingenuamente aceita pelo mercado nos primeiros dias da nova crise, de que Temer deixaria a Presidência em curto prazo, por renúncia ou por uma “ajuda” do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que seria substituído, em eleição indireta, por um político pró-reformas sempre me soou implausível. Primeiro, porque a função do TSE é julgar, nos termos da lei, e não dar “jeitinhos” para aplacar crises. Segundo, porque a maior parte do Congresso também está manchada por graves suspeitas de corrupção e é difícil de imaginar alguém que reúna capital político suficiente para dar andamento às reformas, em meio à gravidade do atual quadro político e econômico.

 

A continuidade de Temer também nos leva a um cenário de enormes incertezas. A prioridade passou a ser manter-se no cargo, em lugar de promover reformas estruturais que possibilitem a retomada do crescimento econômico sustentável nos próximos anos. Não se trata de escolha. É uma decorrência inevitável do enfraquecimento do presidente, após as denúncias da J&F e outras delações que muito provavelmente estão por vir.

 

Pior ainda são os sinais de perigosos retrocessos na economia. Não cabe culpa à competente equipe econômica do governo. A questão é política e pode ser o preço para manter Temer no cargo.

 

O risco de o governo começar a praticar uma espécie de “novíssima matriz macroeconômica” é enorme. Destaco, entre outros, alguns temas que se discutem abertamente em Brasília: a convalidação dos incentivos fiscais estaduais, que distorcem a alocação de recursos e minam a produtividade; o provável recuo em corrigir as funções do BNDES; a ampliação do crédito direcionado subsidiado; novos incentivos ao setor automotivo e ao programa Minha Casa, Minha Vida; compensações à indústria nacional que produz equipamentos para a cadeia do petróleo; e assim vai. Qualquer semelhança com a desastrosa política econômica que levou o País ao caos em 2015 não é mera coincidência.

 

Assim, nem ponte de concreto resiste. (O Estado de S. Paulo/Claudio Adilson Gonçalez)