Se tem uma coisa que muda o dia de Vicente Perbelini é quando chega um comunicado da equipe de veteranos da Dana. Participar dos eventos, rever amigos, e lembrar os tempos do chão de fábrica é uma de suas alegrias. “A Dana merece os parabéns por proporcionar esses momentos. Motiva demais saber que a gente nunca é esquecido”, elogia. O desejo de pertencer e se sentir acolhido tem a ver com a trajetória de vida difícil de um homem simples, que sonhou ser padre e acabou abraçando a fé como uma arma para vencer inúmeros desafios.
Começando do início: Vicente Perbelini nasceu no Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, também conhecido como colônia-asilo de Pirapitingui, na cidade de Itu, um dos maiores leprosários do Brasil. Seus pais estavam no hospital sob tratamento. Lá se conheceram, casaram e tiveram cinco filhos. Como mandavam as medidas restritivas para os doentes de hanseníase naquela época, os filhos logo que nasciam eram transferidos para abrigos infantis. Assim, Vicente e os irmãos, ainda bebês, foram transferidos para o Orfanato Igreja Santa Tereza, em Carapicuíba, na grande São Paulo. Os pais tinham direito de visitar os filhos eventualmente por alguns minutos, por causa do risco de contágio. Vale um parêntese para lembrar que hoje a hanseníase tem cura, o tratamento é oferecido gratuitamente pelo SUS, seja por meio das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e muitos dos estigmas relativos à doença, felizmente, ficaram para trás.
Mas voltando à infância do Vicente, os anos de orfanato chegaram ao fim quando ele completou 11 anos. Seus pais já estavam curados e conseguiram uma casa em Jundiaí para reunir a família. Só então Vicente pode desfrutar de uma vida familiar, frequentar uma escola e iniciar o processo de alfabetização. A entrada no mundo profissional começou cedo, como acontecia naqueles tempos nas famílias com poucos recursos. As confecções da região terceirizavam o acabamento de roupas, sapatos, uniformes e fardas para costureiras da vizinhança. Essas, por sua vez, buscavam crianças pelo bairro para ajudar nos ajustes e colagens. Vicente tinha 12 anos e já engatou na jornada do trabalho. Aos 14 foi admitido em uma loja de móveis, como office-boy; aos 16, em uma serralheria. O então patrão, Nelson Facchini foi responsável por uma guinada na vida incerta de Vicente. Vendo sua habilidade no manejo das serras e soldas, conseguiu para ele uma vaga de aprendiz no Senai e mais tarde batalhou para que Vicente chegasse a uma das maiores empresas da cidade na época, a Sifco. E lá foi Vicente, viver o melhor capítulo de sua história. “O seu Nelson foi meu segundo pai, me encaminhou na profissão, sou muito agradecido a ele”, reforça.
Aos 17 anos, ele entrou para a Matrizaria, como mecânico de ajustagem. Fez curso de desenho técnico, torno e em pouco tempo conseguiu uma vaga no setor de Dispositivo, onde ajustava os calibradores e cuidava com todo zelo das caixas de prensas, cabeças de eixo e sapatas. Nunca faltou, jamais chegou atrasado, foi cipeiro por mais de 10 anos e um funcionário caprichoso do começo ao fim de cada turno. Ficou na Sifco por 32 anos, até decidir que estava na hora de se dedicar integralmente ao pai, que idoso, inspirava muitos cuidados.
Um atalho para o futuro
Nessa jornada aconteceu um fato crucial para os anos pós aposentadoria. Um colega de trabalho da Matrizaria, Roberto Corrêa, pedia para que Vicente lhe ensinasse o ofício de serralheiro. Quase todos os dias, depois do turno do trabalho, eles seguiam para a casa de Corrêa e ali Vicente acabou se revelando um professor dedicado. Sem cobrar nada do amigo, seguiu ensinando técnicas, truques e macetes por meses a fio, até que Corrêa se sentisse seguro para montar a própria oficina.
Muitos anos depois, quando Vicente atravessava uma crise de depressão pela perda do pai, ocorrida em 2009, Corrêa apareceu para uma visita de condolência. Encontrou Vicente sozinho, tristonho, descuidado. A essa altura, o amigo de Sifco era um homem próspero, sua pequena serralheira tinha crescido, era uma empresa lucrativa e dado origem a mais dois negócios que hoje fornecem peças e insumos para várias indústrias da região. Consternado com a situação do amigo, Corrêa o convidou para trabalhar. Vicente relutou quanto pode, mas acabou cedendo. Hoje é o braço direito do patrão. O primeiro a chegar na empresa e a deixar tudo preparado para a entrada dos trabalhadores. Até do café ele cuida, mesmo que para isso tenha que pular da cama ainda na madrugada.
Durante o dia, a bordo do furgão da caminhonete da empresa, corre de um lado a outro, de uma cidade a outra, entregando peças, atendendo clientes e apoiando Corrêa em todas as demandas. A parceria da juventude deu lugar a uma amizade de muita confiança de lado a lado.
Depois de muitas curvas perigosas e obstáculos na estrada da vida, Vicente se sente um homem realizado no volante do próprio destino. Não se casou porque a namorada de anos não aceitava que o pai de Vicente morasse com o casal depois das bodas. Entre a futura noiva e o pai, ele preferiu a segunda opção e jamais se arrependeu de ter cuidado com todo amor do seu Antônio Perbelini até os 94 anos. Sim, ele desafiou todos os riscos da hanseníase e teve vida longa e saudável. Já mãe de Vicente, dona Deolinda, faleceu aos 58 anos de idade, mas de outras causas que nada tiveram a ver com a hanseníase.
Cercado de muitos amigos e vizinhos carinhosos, Vicente gosta do lugar e da casa onde mora com todo conforto. Só não conseguiu realizar o sonho de ser padre, mas é sacristão na paróquia Nossa Senhora Conceição, onde dá total assistência ao padre Jair e é festejado pela comunidade por ser uma pessoa de luz, que distribui carinho e orações por onde passa.